segunda-feira, 14 de janeiro de 2013

DA BIBLIOTECA PROVINCIAL AO MUSEU SERGIPANO DE ARTE E TRADIÇÃO: ALGUMAS NOTAS SOBRE A FORMAÇÃO DO PENSAMENTO MUSEOLÓGICO EM SERGIPE


Cláudio de Jesus Santos

RESUMO: O presente estudo tem como objetivo tecer uma reflexão acerca da formação do pensamento museológico sergipano, entre meados do século XIX e XX, iniciando com a criação da Biblioteca Provincial em 1848, até a criação do Museu Sergipano de Arte e Tradição, em 1948. Para alcançar os objetivos propostos, foi feito uso de um recurso metodológico fundamentado na pesquisa bibliográfica e documental, desenvolvendo também a interdisciplinaridade proposta pela própria Museologia estabelecendo um diálogo com outras disciplinas que dão sustentação a discussão proposta. Através do estudo pode-se concluir que as ações a formação do pensamento museológico pode ser compreendido em três grandes momentos, estabelecidos como pontos fulcrais para se pensar a memória da Museologia constituída em Sergipe.

Palavras-chaves: Museologia, Sergipe, Pensamento Museológico e Museu.

INTRODUÇÃO

Mais recentemente, no Brasil, o fenômeno da Museologia vem sendo analisado através de trabalhos mais densos, problematizando e refletindo sobre vários questionamentos teóricos ligados a recuperação da memória museológica no Brasil. É com esse intuito, a fim de contribuir para a recuperação da memória da Museologia em Sergipe, que elaboramos o presente artigo. Fruto do Trabalho de Conclusão de Curso, apresentado em 2011/1, intitulado “Era uma casa, Era um museu: a formação do pensamento museológico social sergipano em José Augusto Garcez (1948 – 1992)” o texto trata-se de uma adaptação dos capítulos I (Antecedentes museais) e II (Entre os retratos e a mobília de família).

Para alcançarmos os objetivos propostos, foi feito uso de um recurso metodológico fundamentado na pesquisa bibliográfica e documental realizada em alguns órgãos, a exemplo do Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe, Arquivo do Memorial de Sergipe (UNIT) e no Instituto Pesquise do Professor Luiz Antônio Barreto.

Quanto a sua estrutura, para uma melhor compreensão das ideias, dividimos o texto em três partes, entre elas, 1.1 A Bibliotheca Provincial e o embrião dos primeiros fazeres museológicos em Sergipe, definido aqui, como o primeiro momento do pensamento museologico sergipano; 1.2 O Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe e a inserção do Estado no cenário museológico nacional, definido como o segundo momento, em 1912; seguido da seção 1.3 Na Casa de Laranjeiras... O Museu Histórico Horácio Hora; Finalizando com a seção 1.4 Entre os retratos e a mobília de família: o Museu Sergipano de Arte e Tradição, destacado como o terceiro grande momento.

Por fim serão feitas algumas considerações sobre o desenvolvimento do trabalho e a sua contribuição para a ampliação do entendimento acerca do campo museológico sergipano.

1.1 A Bibliotheca Provincial e o embrião dos primeiros fazeres museológicos em Sergipe

A importância dos museus, origem das bibliotecas, é incontestável. Epifânio Dória, 1931.

Com certeza ao fazer a afirmação, ressaltada na epigrafe acima, Epifânio Dória estava se referindo ao Museu de Alexandria, responsável por abrigar uma grande coleção de papirus e outros escritos, que deram origem a biblioteca internacional idealizada por Alexandre. É assim que o bibliotecário faz a introdução do seu relatório, ao falar das condições do então museu abrigado na Biblioteca Pública do Estado, em 1931, a qual também utilizamos aqui para falar da formação do pensamento museológico sergipano, que tem as suas bases lançadas por essa instituição. Indo em direção a afirmação feita por Epifânio Dória, sobre a importante relação, constituída historicamente, entre a biblioteca e o museu, vem a ser na visão de Waldisa Russio (1988) um dos principais marcos, sendo este o primeiro, quando abordamos a evolução do conceito de museus. Segundo a autora, o Museu de Alexandria, pode ser considerado como um modelo representativo do museu na Antiguidade, responsável pela grande ruptura entre o museu sagrado e o científico. Em Sergipe, se tratando dos marcos de importância para a formação e desenvolvimento do seu pensamento, podemos buscar na Bibliotheca Provincial as origens dos primeiros fazeres museológicos, mesmo que rudimentar, baseados nos moldes de outros museus brasileiros surgidos até meados do século XIX. Tendo sua proposta de criação apresentada a Assembléia Provincial, em 1848, pelo laranjeirense Martinho de Freitas Garcez, Bacharel em Ciências Jurídicas e Sociais, a Biblioteca pública de Sergipe foi sancionada no dia 16 de junho do mesmo ano, através da Lei de número 233, pelo presidente de província Zacharias de Góes e Vasconcellos, sendo estabelecida da seguinte forma: Art. 1 Fica creada na capital desta província uma Bibliotheca com a denominação de – Bibliotheca Publica Provincial – que constará de obras antigas e modernas em todos os ramos de conhecimentos humanos, escolhidas e das melhores edições. Art. 3 A Bibliotheca poderá ser colocada em um dos conventos desta cidade, onde melhor parecer ao Governo. Art. 6 Na Bibliotheca haverá uma secção denominada – Arquivo –, que será destinada: – 1 Para originaes, ou copias de mappas e relações estasticas; 2 Para originaes, ou copias de quaesquer papeis do Governo Geral, ou provincial, cuja guarda no Arquivo se julgar conveniente, e para noticias de acontecimentos agradaveis ou desastrosos, provenientes de cousas naturaes; 3°. Para noticias de descobertas úteis de produtos da História natural, mineralogia e botânica, bem assim para originais de memórias remettidas ao Governo da Província para serem oferecidas á Bibliotheca, e que disserem respeito á história della e do Império do augmento e progresso da agricultura, comercio, navegação, industria, sciencias e artes (grifo meu). O secretario desta província faça imprimir, publicar e correr. Palácio do Governo de Sergipe, aos 16 de junho de 1848 da Independência e do Imperio. Como podemos observar, na organização da Biblioteca, apesar da sessão descrita no artigo 6, ser apresentada como Arquivo, suas funções iam além do simples recolhimento de documentos produzidos pela administração da província, a qual seria sua função típica nesse período. Aproximando-se mais do papel exercido pelos gabinetes-museus, típicos do final dos séculos XVIII e XIX (LOPES, 1997), sinalizando que se inseriam no contexto dos museus, a sua época, com a função de documentar, preservar e divulgar as “descobertas úteis de produtos da História natural, mineralogia e botânica, (...) e que disserem respeito à (...)sciencias e artes” abrindo um precedente para a reunir um acervo museológico, passando a dividir o espaço com o acervo bibliográfico. Com isso, podemos enxergar na criação da Biblioteca, mais especificamente no arquivo, o núcleo que deu início aos fazeres museológicos, recolhendo, documentando e preservando o patrimônio natural e artístico sergipano. Tal secção pode também ser entendida como uma forma de suprir algumas das carências culturais da província sergipana, algo possível na visão de “um homem influenciado e entusiasmado pelo “desenvolvimento intelectual e cultural de Pernambuco” (SANTOS, 1984, p. 26), responsável pela elaboração do seu projeto. Apesar de ter sido criada em 1848 a Biblioteca foi inaugurada apenas em 1851 num dos Salões do Convento São Francisco, em São Cristóvão, permanecendo com o seu funcionamento até 1855, ano em que teve seu acervo encaixotado e transferido para a nova capital Aracaju, passando a funcionar de forma precária na Assembléia Provincial, sendo esse um dos fatores responsáveis por ocasionar o seu encerramento (DÓRIA, 1911). Com o advento da República, em 1889, estando Felisbello Firmo de Oliveira Freire como governador, a Biblioteca volta a funcionar através do decreto de 27 de março de 1890, só que com uma função a mais, dessa vez de forma enfática, sendo responsável por ressaltar e desenvolver as atividades de cunho museológico, avaliando que (...) tendo em vista a alta conveniência de disseminar a instrucção por todas as camadas sociaes, e considerando: que ao lado da creação de escholas, deve haver a instituição de bibliothecas onde a população possa encontrar gratuitamente as obras de que careça consultar; que essa medida é de real vantagem para despertar o gosto pelo estudo, máxime entre as classes pobres, que, por falta de recursos, vêem-se privadas de obter conhecimentos de que necessita; que, no regimen a que actualmente obedéce o paiz é de estricta obrigação do governo empregar todos os meios, àfim de levar instrução ao povo, habitando-o assim ao conhecimento completo de todos os seus deveres e direitos; que isto sómente se póde conseguir por meio da eschola e das instituições auxiliares, taes como bibliothecas, museus; que este Estado resente de falta dessas instituições, que tão poderosamente inflùem no desenvolvimento moral e material de qualquer povo; São por meio dessas considerações, destacando a necessidade de órgãos culturais a exemplo de um museu, sentidas pelos sergipanos ao longo de quase quatro décadas, desde a criação da Biblioteca Provincial que podemos perceber, de forma embrionária, a presença do pensamento museológico o qual passava a tomar forma, com a sua institucionalização, estabelecendo-os da seguinte forma: Art. I Fica creada, nesta capital, uma biblioteca pública e á ella annexa um museu, que constará das seguintes secções: Geologia e paleontologia; Mineralogia; Zoologia; Anthropologia. Art. 2. Na biblioteca e museu haverá o pessoal constante do Regulamento que baixa para a execução deste decreto. Art. 3. Revogam-se as disposições em contrário. Cumpra-se e comunique-se. Palácio do Governo do Estado Federado de Sergipe, 27 de março de 18903. Com a criação da Biblioteca-museu, inaugurada em 13 de agosto do mesmo ano, o então Governador contratou seus primeiros funcionários, os quais passaram a ocupar os cargos de bibliotecário e conservador, funções exercidas respectivamente pelo Bacharel Josino Meneses e Antônio de Carvalho4. Em conseqüência da exoneração do bibliotecário, o conservador passou a acumular as duas funções, uma situação muito comum para a época, uma vez que “o livro na biblioteca e o objeto no museu foram durante muito tempo recolhidos, armazenados e preservados por um conservador, com o fim único da preservação patrimonial” (LE COADIC, 2004, p. 12). Mesmo passando por diversas dificuldades enfrentadas para o seu funcionamento, a biblioteca conseguiu manter em sua estrutura o museu, ainda que não estivesse organizado da forma como foi planejado, sendo na visão do bibliotecário Epifânio Dória uma situação própria do Estado, o qual segundo ele institui “coisas que para cuja manutenção (...) falta quase tudo, desde os recursos financeiros aos técnicos que as dirijam” (DÓRIA, 1959, p.01-02). Apesar das mudanças em sua estrutura organizacional, ao longo do tempo, a Biblioteca pública chega a década de 30 com algumas coleções de acentuada importância pertencendo ao museu (DÓRIA, 1918, 1932), um acervo resultante dos seus fazeres museológicos, instituídos desde meados dos oitocentos. É dessa forma que Biblioteca da o seu primeiro passo no que tange a expansão e estímulo para o exercício da Museologia no Estado, lançando os seus alicerces, sob o qual será erguido o mais antigo museu de Sergipe ainda em funcionamento. 1.2 O Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe e a inserção do Estado no cenário museológico nacional Após a iniciativa pioneira, incursionada pela Biblioteca Provincial no universo museal sergipano, a qual ganha forma no período republicano com a Biblioteca-museu, surge o Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe (IHGSE), responsável por inserir o estado no cenário museológico nacional. Sendo uma instituição congênere do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB) nascido em 1838, o IHGSE tem seu nascimento no dia 6 de agosto de 1912, no bojo da intelectualidade sergipana, com o propósito de: Verificar, coligir, arquivar e publicar os documentos, memórias e crônicas relativas às datas históricas, à distribuição geográfica, às curiosidades arqueológicas, ao folclore, etnografia e língua dos indígenas e a tudo que possa concorrer para a História do Brasil e, especialmente de Sergipe (SANTOS, 1984, p. 10) Conhecida também como “a casa de Sergipe”, a Instituto Histórico e Geográfico teve seu projeto idealizado por Florentino Menezes, que juntamente com intelectuais, a exemplo de Prado Sampaio, Manuel Cabral Barreto Neto, João da Silva Melo e outros sinalizaram através da sua organização a “maturação do corpo intelectual do Estado, bem como da consciência do papel interventor dos homens de pensamento nos problemas sociais, políticos e econômicos que afligiam Sergipe” (FREITAS, 2002, p. 14-15), no qual acrescentamos e ressaltamos, também, os de ordem cultural. É dentro desse contexto, na estrutura do IHGSE, que nasce o “esboço” do que seria o atual museu Galdino Bicho (Figura 5). Apesar do surgimento da unidade museal, é preciso deixar claro que Sergipe não é inserido no cenário museológico nacional pela atuação do museu em si, mas sim, pela dinâmica do conjunto das atividades dos seus outros organismos a exemplo do arquivo, da hemeroteca, e da biblioteca, uma vez que as funções do museu em si eram quase que inexistentes. Estando até a década de 50 organizado da seguinte forma: As peças existentes no MUSEU incorporado ao Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe, abrangem duas áreas, sendo uma sala no térreo e um salão no segundo andar. A primeira e principal está situada no térreo da aludida instalação, estando com os objetos arrumados, não atendendo ainda as regras e princípios técnicos. Parte dos objetos estão colocados em peças isoladas e inadequadas, raros objetos trazem etiqueta. Não há salas especiais para exposições, necessário serviço de classificação, livro de visitas, jetões para controle de visitantes, exposições temporárias e comemorativas, estatuto, fichário nem catálogo descritivo. Observamos objetos de variadas espécies sem defesa de valorização. Quanto ao “efeito estético da colocação dos objetos” [a museografia], não é conveniente. Não há renovação nas exposições cuja sala permanece fechada, medida usada contra os atentados por falta de funcionários. Na sala do segundo andar, todo acervo encontra-se disperso, não existindo etiquetas, arrumação, bem assim, meios propícios de defesa contra os estragos do tempo, tudo o que seja de acordo com os princípios técnicos modernos (GARCEZ, 1958, p.38). Mesmo com o estabelecimento do museu podemos perceber que Sergipe ficou por muito tempo numa espécie de “inércia museológica”, algo resultante da quase inexistência das atividades museais, ocasionada pela forte deficiência do museu. Mas, em compensação, a atuação do IHGSE, é de um feito benéfico sem precedentes na preservação do patrimônio histórico e cultural da memória sergipana, estimulando a criação de outras “casas de memória” em Sergipe. 1.3 Na Casa de Laranjeiras... O Museu Histórico Horácio Hora Ficando conhecida nacionalmente como “Museu à céu aberto”, uma referência feita pelo Ministro da Educação Jarbas Passarinho, em visita a cidade no ano de 1972, o município de Laranjeiras ganha seu primeiro museu na década de 40, vindo a compor com o IHGSE as duas primeiras instituições museológicas oficiais do estado. Criado por meio do decreto n. 31 de 16 de maio de 1942, pelo então prefeito Francisco Alberto Bragança de Azevedo, o Museu Histórico Horácio Hora encontrava-se localizado na Rua Coronel Freitas, nº. 19 e ocupava um dos salões da recém criada Casa de Laranjeiras. Tal instituição nasce com o objetivo de expor a história do município e reabri-la, nas palavras de Carvalho Neto, para os “olhos curiosos dos contemporâneos, orgulhosa de ter um passado, de ter uma história e de ter o que contar...” (NETO, 1943, p. 48). Dentro da Casa de Laranjeiras, além do museu, funcionava ainda: Exposição Permanente de Produtos do Município, a Biblioteca Moreira Guimarães (...), a Escola Municipal Ovídio Manaia (diurna), a Escola Municipal Siqueira Campos (noturna) a Agência Municipal de Estatística e o Diretório Municipal de Geografia (GARCEZ, 1958, p. 45) Apesar de ser um centro cultural de acentuada importância na cidade, a instituição não recebeu maiores cuidados pela administração pública, pelo menos no que se refere ao museu, o qual, segundo José Augusto Garcez, só foi organizado e conservado na época em que estava a frente o prefeito responsável pela sua fundação (GARCEZ, 1958, p. 42). Quanto a sua situação em meados da década de 50, a instituição se encontrava da seguinte maneira: Compreendia o Museu apenas uma sala com o acervo espalhado sobre o assoalho e paredes. Não havia arrumação, organização peças destinadas a proteção dos objetos, etiquetas nem catálogos descritivos. Mencionado Museu não possuía direção, apenas uma funcionária incompetente, não preserva os objetos das intempéries. Não havia livro de visitas, pois, não existia freqüência em face de permanecer fechado. O município responde pela manutenção desta entidade. Os prefeitos jamais zelaram pelo patrimônio vinculado à administração. (...) nada obstante sempre foi desprovido de tudo aquilo atinente à perfeita técnica museológica (GARCEZ, 1958, p.42) Complementando com a opinião de Gustavo Barroso, Garcez ressalta: Este museu que se tornou apenas “custódia de objetos” sem nenhuma finalidade educativa, com as portas cerradas ao público, bem poderia constituir um “necrotério de relíquias” na expressão do mestre Gustavo Barroso. É lastimável que o município não zele por um Museu que traz na legenda o nome tradicional do nosso maior pintor, saudosa figura de projeção internacional, porque, na França eterna, recebeu lauréis e honrou o nosso glorioso Estado (GARCEZ, 1958, p. 45). Era nessa situação, de extrema fragilidade, que se encontrava o Museu Histórico Horácio Hora, compondo juntamente com o museu do Instituto Histórico e Geográfico o cenário museológico sergipano. É dentro desse contexto que surge o Museu Sergipano de Arte e Tradição, evidenciado pelas práticas de José Augusto Garcez5 (1918-1992), colocado aqui como um divisor de águas dos fazeres museológicos em Sergipe, o qual será explorado no mais adiante. 1.4 Entre os retratos e a mobília de família: o Museu Sergipano de Arte e Tradição “O Museu (...), em sua própria casa é criação de seu pensamento, voltado sempre para a conservação do que o passado produziu. E não somente o passado é objeto de suas cogitações. O presente já está no seu Museu, ponto de convergência dos que vão a Sergipe.” (Padre Milton Santana, 1958). Partindo dessa observação, feita pelo Padre Milton Santana, é que ressaltamos um dos principais aspectos responsáveis pela criação do Museu Sergipano de Arte e Tradição, o pensamento de Garcez, ou seja, sua imaginação museal, a qual segundo Mário Chagas “não é privilégio de alguns, mas para acionar o dispositivo que a põe em movimento, é necessário uma aliança com as musas”... (CHAGAS, 2009, p.58). A aliança com as musas, da qual fala o autor, pode ser interpretada como uma necessidade de se ter uma ligação com as práticas museológicas necessárias para o desenvolvimento da imaginação. É assim, então, no ambiente familiar, numa relação de intimidade com esse universo museal que é ampliado o entendimento acerca do pensamento museológico em Sergipe. Tendo seu projeto iniciado no final da década de 40, mais precisamente em 1946, Garcez inicia a formação de sua coleção, reunida a partir de suas viagens pelo interior do Estado de Sergipe, é nesse contexto que surge o Museu Sergipano de Arte e Tradição, fundado oficialmente no ano de 1948, o qual mantinha em sua origem o pensamento do movimento modernista, ainda muito presente na primeira metade do século XX. Um pensamento baseado no ideal da preservação do popular, do tradicional, na qual segundo os modernistas estava contida a verdadeira cultura brasileira, pois estava longe da elite e consequentemente do que era estrangeiro (NOGUEIRA, 2005). Assim foi pensado o museu criado por José Augusto Garcez, com o intuito de musealizar a cultura popular sergipana através do patrimônio histórico cultural pertencente ao Estado, a fim de inserir Sergipe nesse projeto de modernidade cultural. Até então, mesmo possuindo dois museus, o Museu do IHGSE em Aracaju e o Museu Histórico Horácio Hora em Laranjeiras, Sergipe permaneceu por quase quatro décadas numa espécie de “inércia museológica”, uma situação que veio ser sanada com a atitude de Garcez após fundar o museu em sua casa. De acordo com Maria Lourenço é, justamente nesse período, no qual surge o Museu de Arte e Tradição, que “Museu pouco mais é que improviso, ação entre amigos e vôo cego quanto a sua permanência e continuidade” (LOURENÇO, 1999, p.21). A autora fala justamente da falta de apoio do poder público para a criação de museus, ficando sua criação nas mãos de sujeitos preocupados com a preservação do patrimônio e da memória. De fato é bem verdade, pois como declara Garcez, ele adquiriu com recursos próprios o seu acervo, e o manteve dentro de suas possibilidades sem receber apoio, o qual julgava ser indispensável para o melhor funcionamento da instituição. José Augusto Garcez ainda justifica a necessidade da criação do Museu em virtude da constante exportação dos bens patrimoniais, algo que acontecia, segundo ele, em parte pelo descaso do próprio Estado (GARCEZ, 1958). Agindo como um verdadeiro mecenas6, Garcez fez parte de uma frente intelectual preocupada com a cultura museal dando abrigo literalmente ao patrimônio sergipano em sua casa, é assim que surge a primeira instituição museológica que da inicio ao processo de salvaguarda, preservação, pesquisa e comunicação. A partir das suas ações museológicas Sergipe passa a ter mais destaque no quadro da museologia nacional, acompanhando o período de efervescência do surgimento dos Museus de Arte Moderna. Como compreende Lourenço, “nem todos são chamados de Museu de Arte (...). Outros contêm em sua denominação Museu de Arte e Tradição, como os do Estado do Sergipe, sediados em Aracaju (19487) e na cidade de Itaporanga D’Ajuda” (1999, p.89). Através da citação da autora podemos perceber a importância do museu criado por Garcez para a composição do cenário museológico sergipano, na década de 40, podendo ser percebido também como um elemento de ruptura para a renovação da Museologia no Estado, que passa a ganhar um novo modelo de museu. Vejamos como estava organizado o Museu Sergipano de Arte e Tradição, segundo seu próprio fundador, que o descreve em sua obra museológica, “Folclore: Realidade e Destino dos Museus” (1958 p.33-35). Endereço-Avenida Barão de Maruim, 629 – Caixa Postal, 83. Distrito- Aracaju- Estado de Sergipe BRASIL. Entidade mantenedora - José Augusto Garcez. Direção - José Augusto Garcez. Natureza - Particular. Características - O Museu é autônomo, de caráter geral, franqueado diariamente ao público, com admissão gratuita do visitante, variando o número anualmente de 800 a 2.000 pessoas. Não há horário estabelecido, porque está vinculado na própria mansão residencial, sendo o público atendido pelo proprietário, sua família e empregados. Observações- a) Mencionado órgão foi organizado com recursos próprios, não recebendo até hoje [1958] nenhum auxílio dos poderes públicos. b) A casa é alugada, não correspondendo a técnica exigida na perfeita função do verdadeiro Museu. c) Todavia, animado pelo idealismo e os conhecimentos de museologia, quanto a organização, arrumação, catalogação, restauração de objetos, venho realizando de acordo com os nossos recursos. Por falta de auxílio de poderes públicos ainda não dispomos de funcionários competentes e técnicos a fim de transformar a casa da História atuante na sua ação educativa e social. d) Realizo pesquisas com sacrifícios e recursos próprios no que se refere a paleontologia, etnologia e Arte Popular. e) Possuímos: A - Achados referentes à Paleontologia (fósseis de Mastodonte e Megatherium) e de outros animais. B - Objetos que representam a etnologia brasileira. Aquisições- C - Arte Sacra: - imagens em madeira, terra-cota, porcelana, gesso, cera, bronze. Sinos, peças barrocas, etc. D - Arte popular em geral, inclusive artesanato. Especificação do material: terracota, couro, barro comum, chifres, sisal, osso, cipó, palhinha, taquara, tucum, fio, caroá, coco, flecha, etc. E - Armaria: - pistolas, armas brancas, lanças, trabucos, fuzis, rifles, garruchas e espadas. Máquinas de guerra: - canhões e balas. F - Instrumento de Tortura- tronco. G - Ciclo do Cangaceiro: Embornais de pano e couro, cantil, chapéu e punhais que pertenceram aos bandidos: José Baiano e Lampião. H - Ciclo da Escravidão- peças e documentos. I – Iconografia: Imagens e quadros. J - Animais paquidermazados. K- Antropologia Cultural. Empreendimento: - Em 1957, na campanha Internacional de Museus – apesar de não receber revistas, cartazes, indispensável colaboração publicitária nem auxilio do ICOM - inaugurei a secção de Antropologia Cultural, exposição interna e na Livraria Regina Limitada. Livro em preparo: Função do Museu no sistema educacional brasileiro, devidamente ilustrado. Mantenho a dez anos através do PRJ-6 o Programa radiofônico PANORAMA CULTURAL, aonde existe uma secção sobre a missão dos Museus. Serviço de Documentação:- Por carência de espaço, não possuímos sala de reserva ao público. Toda residência é ocupada com o acervo. Mantemos uma biblioteca de assuntos ge variando o número anualmente de 800 a 2.000 pessoas. rais. Em 1953 introduzi em Sergipe “literatura falada” com o Serviço de Documentação do “Movimento Cultural de Sergipe”. Editei 33 vols. sobre economia, poesia, finanças, sociologia e Museu. Para a publicação de aludidas obras, contei com a colaboração de alguns patriotas. Visitas guiadas:- Aos visitantes esclareço a origem do acervo, bem assim o aspecto histórico, empenhando esforços a fim de oferecer ao público o sentido primordial que é de colocar o Museu - na missão educativa e social. Mesmo, segundo Garcez, “não correspondendo a técnica exigida na perfeita função do verdadeiro Museu” a instituição recebe vários comentários em âmbito nacional das mais diversas autoridades da área cultural, a exemplo de Drummond, Menotti Del Picchia, Gustavo Barroso, David Carneiro, Fernando de Azevedo e outros que colocam o Museu Sergipano de Arte e Tradição em uma posição de importância na composição do quadro museológico nacional, os quais manifestam votos de apoio ao seu empreendimento em prol do desenvolvimento cultural do estado de Sergipe. Apesar de funcionar em um ambiente inapropriado, como dizia Garcez, “por carência de espaço”, num lugar que limitava as possibilidades na utilização das técnicas expográficas e dava um aspecto de uma grande reserva técnica, pois tudo estava em exposição, o Museu Sergipano de Arte e Tradição conseguiu cumprir as suas funções museológicas de preservação, pesquisa e comunicação, o que lhe dava um destaque entre os demais museus do Estado, diante de sua funcionalidade, sendo bastante visitado, variando anualmente de 800 a 2.000 pessoas. É neste cenário, entre os retratos e a mobília de família, que ocorre o desenvolvimento das pesquisas e estudos da Museologia8 e cultura material sergipana, o que lhe rendeu algumas publicações a exemplo de Holandeses em Sergipe (1954), Canudos Submersos (1956), O destino da Província (1954), Centenário de João Ribeiro (1960) entre outras. Sua casa torna-se, então, um centro irradiador do pensamento e dos novos fazeres museológicos em Sergipe, sendo sua coleção uma chave reveladora para o seu entendimento, através da qual seus estudos construía, reconstruía e desconstruía versões, da cultura sergipana, pautadas no processo da pesquisa museológica. A sua ação gerou, ainda, um reflexo no quadro da museologia sergipana em sua época, ficando também impressa na obra Realidade e Destino dos Museus (1958), a qual pode ser considerada como um manifesto por uma “Museologia consciente”, mais avançada e preocupada com a sua responsabilidade social e com o fazeres museológicos, até então ausentes em Sergipe, os quais podem ser caracterizados pelas ações de preservação, pesquisa e comunicação. Considerações finais Após a incursão pelo campo da Museologia sergipana, através de seus marcos fundamentais, temos a certeza de que muito ainda há por se fazer para chegarmos a uma compreensão plena do pensamento museológico constituído em Sergipe. Mas em se tratando da contribuição do presente artigo para a produção do conhecimento do campo da Museologia em Sergipe, podemos destacar alguns pontos de relevância que acrescentam no entendimento acerca da formação do seu pensamento. No tocante ao estabelecimento de um marco para se pensar a incursão de Sergipe pelo universo da Museologia, podemos estabelecer o século XIX, com a criação da Biblioteca Provincial, como um período chave em que se da o seu fomento, o qual culmina com a criação da Biblioteca-museu criada por Felisbelo Freire. Mesmo não funcionando de forma plena, como foi pensada a Biblioteca, podemos concebê-la como o embrião que deu início a formação do pensamento museológico sergipano, configurando o primeiro grande momento da Museologia em Sergipe. Esta ação gerou um reflexo, para se pensar a necessidade de novos espaços de preservação da memória e do patrimônio de Sergipe, abrindo espaço para a criação do Museu implantado no Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe, sendo este o segundo grande marco. Após apresentar, no desenvolvimento do trabalho, em que situação se encontrava o cenário museal sergipano até o final da década de 1940, do século XIX, com duas instituições museológicas inativas em suas funções técnicas, como diagnosticou José Augusto Garcez (1958), percebemos que o Museu Sergipano de Arte e Tradição, fundado em sua casa no ano de 1948, foi um dos grandes responsáveis por inserir no Estado mudanças de pensamento na forma de se “fazer e pensar’ museu, dando início as atividades de preservação, pesquisa e comunicação, marcando um período de impulso para a renovação da Museologia sergipana, sendo este o grande terceiro momento. Concluindo, então, o presente texto, podemos estabelecer esses três grandes momentos, como a tríade que contribuiu de forma decisiva para a formação do pensamento museológico sergipano explanado nesse breve texto. BIBLIOGRAFIA CHAGAS, Mário de Souza. A Imaginação Museal: Museu, memória e poder em Gustavo Barroso, Gilberto Freyre e Darcy Ribeiro. 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