Hippolyte Brice Sogbossi**
Com a finalidade de alcançarmos o objetivo proposto fizemos uso de uma revisão bibliográfica aliada ao método etnográfico tendo como lócus de estudo o Ilê Axé Opô Afonjá, situado no Estado da Bahia, estabelecendo uma ação metodológica interdisciplinar entre Ciências da Religião e outros campos do conhecimento.Este artigo é resultante de um dos capítulos da dissertação de mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião da Universidade Federal de Sergipe, intitulada “Não Chuta que é macumba: a patrimonialização do Ilê Axé Opô Afonjá e a sua contribuição no fortalecimento de uma identidade afro-religiosa no Brasil”, orientada pelo Professor Dr. Hippolyte Brice Sogbossi e desenvolvida no período de 2017-2019 com o apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) e Fundação de Apoio a Pesquisa e Tecnologia do Estado de Sergipe (FAPITEC).Assim iniciaremos as primeiras linhas abordando o contexto histórico dentro do qual foi instituído o tombamento do primeiro templo religioso e as discussões em torno das questões religiosas significativas presentes no processo de patrimonialização na década de 1980.Partindo do redimensionamento cultural e social que os terreiros de candomblé ganharam no século XX com o título de patrimônio nacional, inaugurado pelo tombamento da Casa Branca do Engenho Velho (Ilê Axé Iyá Nassô Oká), abordaremos o conceito de patrimônio cultural e a dimensão que ele ganha quando se trata dos bens produzidos pelas comunidades de terreiro, como se deu esse processo de patrimonialização e as estratégias para a legitimação de um “patrimônio sagrado”.É sob a ótica do patrimônio que analisaremos a desconstrução do olhar colonizador sobre a cultura religiosa do povo negro bem como a demonização dos bens culturais produzidos pelas comunidades de terreiro que passa a ganhar novas representações.Com a prática do tombamento chamamos atenção para as transformações advindas desse gesto político nas últimas duas décadas do século XX. Se por muitos anos o candomblé não teve espaço para poder se afirmar enquanto religião e se fazer reconhecer, saindo da marginalização, agora o cenário passa a ser modificado. Assim, as comunidades de terreiro passam a criar mecanismos de desconstrução do olhar colonizador privilegiando práticas de materialização do sagrado.
A DIMENSÃO DO CONCEITO PATRIMÔNIO CULTURAL QUANDO TRATAMOS DOS BENS
PRODUZIDOS PELAS COMUNIDADES DE TERREIRO
“Devagar com o andor que o santo é de barro”. É a expressão mais adequada e
sensata que podemos utilizar para expressar o quanto é frágil e ao mesmo tempo
amplo o conceito de patrimônio, quando tratamos dos bens culturais produzidos
por uma comunidade religiosa, nesse caso o Candomblé.
Antes de mais nada, falar
sobre patrimônio aliado ao campo religioso e a construção de novos sentidos
implica em saber o que na verdade tratamos como patrimônio, uma vez que o termo
tem uma abertura polissêmica. É evidente que se faz necessária uma
contextualização histórica e até mesmo uma prévia definição. Para iniciarmos
nosso diálogo, tratando do termo, Fançoise Choay diz que
• “Patrimônio. Esta bela e antiga palavra estava, na origem, ligada às estruturas familiares, econômicas e jurídicas de uma sociedade estável, enraizada no tempo e no espaço. Requalificada por diversos adjetivos (genético, natural, histórico, etc.) que fizeram dela um conceito ‘nômade’, ela segue hoje uma trajetória diferente e retumbante (CHOAY, 2006, p.11)
Como bem esclarece de forma direta e imediata, o
sentido de patrimônio teve em sua origem uma ligação a bens de família, o que
justifica bem a raiz do termo, vindo do latim patrimonium. Os bens a quem por
direito pertenciam.
Quando se trata da seleção dos bens culturais, ou seja, do
conjunto de objetos materiais que agregam os valores históricos e artísticos de
uma comunidade, o que interessa é justamente saber a quais grupos pertencem tais
bens, quem representa, e qual herança será perpetuada, para assim obter o status
de patrimônio por parte dos órgãos oficiais responsáveis pela preservação.
Foram
esses bens selecionados que contribuíram para um ideal de nação, que começou a
ser forjada nos primeiros anos da década de 20 do século XX, buscava-se então um
“acervo de brasilidade”, uma nação imaginada que seria concretizada pelo
patrimônio. Essa seleção dos bens culturais tem uma relação com o que Eric
Hobsbawn chama de processo de formalização ou ritualização caracterizado por
referir-se ao passado tendo em vista a invenção de uma tradição (HOBSBAWN,2002,
p.13), nesse caso formalizada pela patrimonialização. Aqui entendemos
patrimonialização como o processo de identificação, seleção, registro e
preservação de bens culturais que passam a ganhar status patrimonial.
Aqui o
patrimônio que tratamos é o cultural, o termo já revela a noção que pretendemos
abarcar em nossa discussão. Não se trata de um patrimônio constituído de pedra e
cal, e nem tampouco utilizaremos as dimensões de material ou imaterial (1) ,
categorias comumente utilizadas como forma de distinguir bens palpáveis,
visíveis de impalpáveis, invisíveis, tratando-se assim de costumes, valores e
incluindo até mesmo tradição. Tratar o patrimônio dentro dessas duas categorias,
diferenciando-as é quase que inútil dentro do contexto afro-religioso, uma vez
que os bens culturais produzidos pelas comunidades de terreiros têm sua
relevância nessas duas dimensões. O material é tão importante quanto o
imaterial, o qual será traduzido em costumes, modos de fazer e contribui ainda
na manutenção da tradição religiosa.
A respeito da definição do conceito, Por patrimônio cultural pode-se entender aquilo que se dá pela diferença, que um grupo social considera como sua cultura própria, que sustenta sua identidade e o diferencia de outros grupos, incluindo-se aí a identificação com os bens físicos, monumentos, objetos, e também linguagens, conhecimentos, tradições, modos de usar os bens e os espaços físicos e de se organizar no espaço físico-social, que se constitui e se transforma no tempo (CHUVA apud NOGUEIRA. 225-226).
Como podemos observar o conceito utilizado é abrangente e não comporta
limitações, é a partir dele que nos guiaremos aliando-o ao campo religioso. Além
do conceito se faz importante também ressaltar a função que o patrimônio
cultural exerce, que é justamente o de comunicar. É a partir da comunicação que
são reforçados valores. É dentro desse aspecto que consideramos o Ilê Axé Opô
Afonjá (2) como um dos maiores espaços religiosos, se não o maior, a impulsionar
valores estéticos e éticos do candomblé através de sua produção cultural aliada
à sua dimensão midiática. Segundo Raul Lody:
Valorativamente, são conferidas aos terreiros a guarda, a proteção e a manutenção de conjuntos expressivos das culturas africanas, que, coordenadas pelos princípios religiosos, conseguiram preservar idiomas, tecnologias, música, dança, gastronomia, teatro, liturgias e sistemas de mando e poder intramuros e referências complexas da sociedade total (LODY, 2006, p.13).
Partindo desse princípio, como bem relata Lody, percebemos a
importância dos terreiros na guarda, preservação e comunicação dos bens
produzidos. Ainda que o processo de seleção dos bens, que se deseja
patrimonializar, esteja sob o encargo de profissionais autorizados por parte dos
órgãos oficiais – que garantem o título oficial de patrimônio cultural perante a
sociedade – existiu e existe uma organização por parte das comunidades
religiosas, no sentido de garantir e atribuir os valores e significados,
tornando-o significativos enquanto suporte de memória. Ou seja, é a comunidade
religiosa, que faz do objeto um bem de valor cultural e dá o sentido para que se
torne patrimônio. Para se fazer entender a importância da comunidade religiosa
no processo de patrimonialização e a sua função de comunicar, é necessário
tornar explicita a diferença entre bem cultural e bem patrimonial. Assim,
Ao se considerar um bem como bem cultural, ao lado do seu valor utilitário e econômico (valor de uso enquanto habitação, local de culto, ornamento etc; e valor de troca, determinado pelo mercado), enfatiza-se o seu valor simbólico, enquanto referência de significações da ordem da cultura. Na seleção e no uso dos seus materiais, no seu agenciamento, nas técnicas de construção e elaboração, nos motivos, são apreendidas referências ao modo e às condições de produção desses bens, a um tempo, a um espaço, a uma organização social, a sistemas simbólicos. No caso dos bens patrimoniais selecionados por uma instituição estatal, considera-se que esse valor simbólico refere-se fundamentalmente a uma identidade coletiva, cuja definição tem em vista unidades políticas (a nação, o estado, o município). (FONSECA, 2009, p.42).
A partir do entendimento do
significado de bem cultural podemos perceber a importância da comunidade no
processo de eleição do bem que está em vias de ganhar o status de patrimônio.
Com isso podemos enxergar que a atribuição de valores e sentidos ao bem
patrimonializado não é dado pelo Estado, como muitos entendem, apenas é
reconhecido como digno de ser preservado.
Oficialmente, a nível nacional, o
órgão responsável pela preservação do patrimônio cultural brasileiro é o
Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN). Criado em meio a
essa política de valorização dos bens culturais o IPHAN tinha como um de seus
objetivos contribuir na formação de uma identidade nacional a partir de uma
memória eleita. Partindo desse princípio Antônio Gilberto Ramos Nogueira
salienta que:
Na formação do pensamento preservacionista encontra-se a ideia de um patrimônio histórico e artístico nacional que atenda à necessidade daqueles intelectuais que se colocavam na “missão” de forjar uma nação e um povo pela vertente da cultura e identidade nacional (NOGUEIRA, 2005, p.243).
Foi com essa
missão que Mario de Andrade recebeu o convite do então Ministro da Educação e
Saúde Gustavo Capanema, no ano de 1936, no governo do presidente Getúlio Vargas.
No ano de 1937, o anteprojeto de lei criado pelo modernista, foi promulgado como
Decreto-Lei nº 25, institucionalizando as práticas de cunho preservacionistas.
A
metodologia de preservação utilizada pelo IPHAN se dá através do tombamento,
sendo essa a ferramenta de reconhecimento que determina a proteção do bem
cultural eleito, efetuando assim o processo de patrimonialização.
Contrastando
com esse processo de representação e identidade, o candomblé estava vivendo um
período ainda de turbulência e perseguição política. Segundo Edmar Ferreira
Santos, seguindo os passos em sua pesquisa de estudos de pesquisadores
consagrados como Roger Bastide, Edson Carneiro, José Reis, afirma que “os anos
que seguiram a década de 1930 acrescentaram outros ingredientes à complexa trama
de perseguição aos candomblés de Cachoeira e imediações” (SANTOS, 2009,
p.187-188). Diante desse quadro a eleição de um bem cultural ligado à memória da
população afro-religiosa estava distante de se tornar patrimônio cultural. O
lema era destruir.
Após anos de afirmação do IPHAN com as práticas
preservacionistas voltadas para o patrimônio religioso cristão, mais
precisamente colonial barroco, os terreiros de candomblé passam a disputar
espaços de legitimidade e representação na década de 1980.
É importante
salientar que as conquistas adquiridas por meio dessas disputas não é apenas
resultado de um movimento de fora para dentro dos terreiros, ou seja, de
intelectuais que passam a colocar as religiões de presença africana numa posição
de relevância, em seus estudos, a exemplo de Ruth Landes (1947), Pierre Verger
(1957), Roger Bastide (1971), Joana Elbein (1984), entre outros. Mas
principalmente é um movimento que se dá de dentro para fora, como parte de uma
estratégia, abrindo as portas do terreiro e recebendo esses pesquisadores.
Entre
pesquisadores, fotógrafos, poetas e tantos outros intelectuais ocuparam
importantes posições dentro do Candomblé. Dentre eles destaca-se Jorge Amado.
Como relata a Iyalorixá Maria Stella de Azevedo Santos (3), última sacerdotisa a
comandar o Opô Afonjá, o escritor foi o responsável por estabelecer um contato,
através de Osvaldo Aranha, com o então presidente Getúlio Vargas, que a seu
pedido conseguiu sancionar o Decreto-Lei número 1.202, no qual dava liberdade
para a prática da religião, que até então era criminalizada.
No ano de 1984 o
Ilê Axé Iyá Nassô Oká, conhecido como Casa Branca do Engenho Velho, entra na
briga pelo reconhecimento do terreiro com o patrimônio cultural brasileiro.
O
histórico de bens preservados pelo IPHAN era de um “patrimônio branco”,
elitizado até então pela arquitetura nobre e estilizada. Tombar um terreiro de
candomblé até então, significava patrimonializar bens que foram historicamente
rejeitados. O discurso da brasilidade e a busca de uma identidade para a nação,
até então, não comportava o patrimônio afro-religioso.
Nos relatos do
antropólogo Gilberto Velho, responsável por ser o relator do processo, membro no
ano de 1984 do Conselho do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, foi uma
dura defesa na época, pois o tombamento da Casa Branca ia de encontro a política
de preservação. Não se tinha aparentemente um prédio monumental. Para as pessoas
que justificavam a sua importância era o sagrado. No entanto, não se tinha como
tombar a religião, ainda mais uma religião que tornava-se aos olhos de muitos,
fragilizada por não ter uma sustentação literária, sendo sustentada pela
oralidade. Um feito quase que impossível.
Com essa ação o IPHAN foi obrigado a
repensar o sentido e os mecanismos de preservação, uma vez que o tombamento
tinha como prerrogativas duas questões, o “engessamento” do bem móvel e o valor
artístico. Nesse caso, como garantir a ausência de mudanças de um bem sujeito à
vontade dos deuses? Qual arquitetura preservar dentro de uma estrutura simples,
sem muitos recursos estéticos? Mediante tais questionamentos Gilberto Velho
argumentou:
Tratar-se de ‘um fato social, um terreiro em plena atividade, com seus fiéis, sacerdotes e ritual em pleno dinamismo’. Ao recomendar o tombamento, considerei chamar atenção para o fato de que o acompanhamento e supervisão da SPHAN deve, mantendo seus elevados padrões, incorporar uma postura adequadamente flexível diante desse fenômeno religioso (VELHO, 2007, p.250).
Sabiamente o
intelectual antropólogo justificou o tombamento justamente na sua diferença,
exortando a importância da atividade religiosa na construção e na dinâmica da
identidade. Gilberto Velho reforça ainda a importância do movimento em prol do
tombamento por parte das lideranças religiosas.
Foi sustentando esse discurso,
em meio a uma tensa discussão, que o terreiro foi tombado mediante a uma forte
resistência da ala mais conservadora do Instituto. Assim no dia 31 de maio de
1984 chegou-se à decisão pela prática do processo de patrimonialização do Ilê
Axé Iyá Nassô Oká, sendo homologado o efetivo tombamento no dia 27 de junho de
1986 e inscrito no Livro Arqueológico, Etnográfico e Paisagístico, bem como no
Livro Histórico.
Após essa conquista, os bens culturais produzidos pelas
comunidades afro-religiosas, e consequentemente os terreiros, passaram a ser
“oficialmente” importantes espaços políticos de legitimação do “poder simbólico”
(4) exercido pelo Candomblé, enquanto movimento religioso representativo de um
grupo, na sociedade.
A partir desse momento é preciso que tenhamos um olhar
aguçado para as transformações advindas desse gesto político na década de 1980.
Se por muitos anos o candomblé não teve espaço para poder se afirmar enquanto
religião e se fazer reconhecer, saindo da marginalização, agora o cenário passa
a ser modificado. Assim, as comunidades de terreiro passam a criar mecanismos de
desconstrução do olhar colonizador privilegiando práticas de materialização do
sagrado.
Quase uma década depois, o Ilê Axé Opô Afonjá, solicita o pedido de
tombamento no ano de 1998. Diferentemente dos impasses que se sucederam na
década de 1980, o acontecimento e a aprovação se dá de forma mais tranquila. Na
ocasião o status de patrimônio adquirido pelo terreiro, se tornaria um presente
a então Iyalorixá Stella Azevedo, por estar completando sessenta anos de
iniciada no candomblé. Foi então no dia 28 de junho de 2000 que é inscrito no
Livro do Tombo Arqueológico, Etnográfico e Paisagístico.
Numa ordem de não tão
menos importância, o Ilê Iyá Omim Axé Iyámassê, o Gantois como é popularmente
conhecido. Possuindo uma grande importância e estando entre um dos terreiros
mais tradicionais da Bahia, conhecido nacionalmente quando esteve sob o comando
de Mãe Menininha, o terreiro conserva em sua linhagem a sucessão matriarcal.
Citado por autores clássicos, como Roger Bastide, Nina Rodrigues, Edison
Carneiro, Vivaldo da Costa Lima, entre outros, a casa de Candomblé foi fundada
pela africana Maria Júlia da Conceição Nazareth, por meio de uma dissidência de
sucessão da Casa Branca do Engenho Velho. Assim a africana de Abeokutá construiu
um espaço para perpetuar os costumes religiosos do povo yorubá, comprando o
terreno de Edouard Gantois, um traficante de escravos. Estando localizado em uma
região de alto relevo, a sua posição se deu de forma estratégica, afim de se
resguardar da repressão e perseguição policial na época. Sobre isso Nina
Rodrigues relata
Este terreiro do Gantois pode servir de modelo para uma ideia exata do que é um templo fetichista na Bahia, assim como em que consiste o candomblé, a grande festa anual. Tira ele o nome francês do antigo proprietário da chácara em que funciona, e fica quase a meio caminho do arrebalde do Rio Vermelho. Situado no alto de uma colina muito á prumo, o acesso a partir da linha de bondes que passa no vale, se faz por uma vereda sinuosa e íngreme, protegida em certa altura de degraus talhados no solo. No Gantois, o terreiro funciona num barracão, coberto de telha, e de paredes de taipa, que fica no centro de uma clareira ou roçado, sombreado de algumas árvores frondosas (RODRIGUES, 2006, p.51-52).
Desde sua fundação, o terreiro permanece nessa mesma
localidade, mesmo com as mudanças ocorridas na paisagem da cidade a casa de
candomblé perpetua a tradição do culto aos orixás, mantido pela sua linhagem
matriarcal.
O terreiro do Gantois foi fundado em 1849 por Maria Júlia depois do
seu rompimento com a Casa Branca do Engenho Velho, após a disputa pelo trono e
consecutivamente a sua perda. Após a morte da Yalorixá fundadora, segue o
comando com sua filha Pulchéria Maria da Conceição Nazareth (1841-1918), a qual
estava já preparando a sua sobrinha Maria Escolástica da Conceição Nazareth
(1894-1986), a famosa Mãe Menininha do Gantois, para assumir o Ilê Axé. Com a
súbita morte de Mãe Pulchéria, Mãe menininha fica impedida de assumir o trono
devido a sua pouca idade, passando então a sua mãe Maria da Glória.
Diferenciando-se das outras casas tradicionais como a Casa Branca do Engenho
Velho e Opô Afonjá nas quais a escolha da sucessora se dá por meio do jogo de
búzios, no Ilê Iyá Omim Axé Iyamassê (Gantois), a sucessão se dá pela linhagem
familiar. Sendo também uma das estratégias de garantir a segurança do patrimônio
religioso e familiar, assim como acontece com a Casa de Olga Régis de Alaketu.
Com a morte de Maria da Glória em 1920, Mãe Menininha assume o trono no ano de
1922, sendo o período de maior reconhecimento para o candomblé do Gantois. A
referida Yalorixá tornou-se então a mais influente de sua época, sendo cantada e
referenciada na história do Candomblé. No dia 13 de agosto de 1986 Mãe Menininha
faleceu de causas naturais aos 92 anos de idade deixando o legado para sua filha
mais velha Cleusa Millet, que por sua vez veio a falecer no ano de 1997.
Atualmente estando na sexta sucessão a sua filha mais nova Carmem Oliveira da
Silva.
Em 1992, o Gantois abre suas portas para a comunidade de uma forma
diferente, agora não apenas aos fiéis, mas também aos que desejam conhecer um
pouco mais da memória religiosa do candomblé, através do acervo de mais de 500
peças que perpetua a imagem da grande Mãe Menininha. Várias atividades
socioculturais marcam o espaço do Ilê Iyá Axé Omim Iyamassê através da
Associação de São Jorge Ebé Oxossi criada em 1949.
A partir dessa iniciativa o
Memorial, que ocupa o espaço religioso, encontra-se integrado à comunidade
religiosa e todo o seu entorno, proporcionando um olhar diferenciado a todos que
visitam. A ressignificação e a abertura do espaço de memória reforçam o aspecto
múltiplo que é uma casa de candomblé, pois além dos cuidados para com os Orixás,
importa também o cuidado com o humano por se tratar justamente de uma extensão
do sagrado. A valorização do corpo enquanto templo que manifesta os deuses é tão
importante quanto a valorização dos otás, das quartinhas, dos ilekes, por essa
razão a ideia de patrimônio cultural foi repensado a partir dos terreiros.
Também para o terreiro não é importante apenas os que estão dentro, mas
principalmente os que estão fora. Esse aspecto é ressaltado por Miriam Rabelo
enfatizando que,
O terreiro é um espaço de encontro e convivência, espaço que se define por uma experiência de multiplicidade. No candomblé a multiplicidade é bastante valorizada. Mas não é simplesmente exibida, admirada e celebrada nas festas, não é matéria para simples apreciação. Precisa ser caminhada e desenvolvida. (...) O terreiro é tanto lugar de forte exibição quanto um espaço de ocultamento, de portas e recipientes fechados, de visibilidade reduzida ou obstruída. O visitante que chega não demora a perceber uma distinção importante entre lugares de acesso restrito ou controlado, fechados ou entreabertos – embora estes últimos lhe sejam vetados, sua existência não lhe passa despercebida. (RABELO. 2014, p. 279-282)
Talvez esse aspecto múltiplo dentro das
comunidades de terreiro, no qual se encaixa o memorial construído no Gantois,
seja em decorrência também de como os terreiros caminharam historicamente, em
muitas situações tendo que se esconder para poder se perpetuar. Entre os lugares
entreabertos e até mesmo fechado está a sobrevivência das tradições
afro-religiosas, essa também é uma forma encontrada pelas comunidades para se
manter o “segredo”, tão importante, que poderá ser apenas revelado e partilhado
com aqueles que fazem parte do ethos sagrado. É por essa razão que tudo é muito
mais visto do que falado. A observação é resultante de um processo também de
sobrevivência das religiões de presença africana.
Foi dessa forma que conseguiu
se sustentar em meio as diversidades de um ambiente culturalmente hostil. Se no
século XIX a ideia era ocultar o espaço religioso para se preservar, no final do
século XX a ideia se inverteu e o Gantois teve que revelar os seus bens
culturais. Assim no início do século XXI o Ilê Iyá Axé Iyamassê foi reconhecido
como patrimônio cultural do Brasil, sendo tombado no ano de 2005.
Estando entre
as casas de candomblés tradicionais da Bahia, os terreiros tombados, destacam-se
em sua maioria, pela resistência e pela tradição centenária de culto aos Orixás.
São espaços responsáveis por manter um arquivo vivo das tradições religiosas do
povo Nagô. Evidentemente que o tombamento não faz as outras casas de candomblés
menos importantes por não ter o reconhecimento nacional, algumas inclusive
possuem proteção e tombamento estadual, como é o caso do Terreiro Filhos de Obá,
situado na cidade de Laranjeiras – Sergipe, e que está em fase de análise do
pedido, afim de ser reconhecida nacionalmente, assim como outras.
No século XXI
as casas de candomblé chegam com espaços fortalecidos e ressignificados pelo
processo de empoderamento adquirido pelas comunidades afro-religiosas. De sítios
limitados a templos abertos ao povo, os terreiros hoje se constituem como
fronteiras de afirmações identitárias através dos seus bens culturais que
refletem suas tradições.
CULTURA DE TERREIRO: A DIMENSÃO RELIGIOSA E CULTURAL DO CANDOMBLÉ
Como já dissemos, o candomblé passou por um período de perseguição e coerção
devido a sua demonização pela cultura cristã, tendo que se esconder para poder
sobreviver e até mesmo camuflar suas crenças. Não vamos afirmar que o
sincretismo faz parte apenas desse processo de camuflagem dos valores religiosos
da cultura Nagô, uma vez que entendemos o sincretismo como um fator inevitável,
uma resultante do encontro de culturas distintas, então logo, não podemos fazer
a colocação que o sincretismo foi apenas uma forma de sobrevivência. Preferimos
ficar então com a declaração de Nina Rodrigues quando fala da ilusão da
catequese. Ou seja, não conseguiram suplantar a cultura religiosa dos africanos.
Mas, mesmo não suplantando, os danos foram irreparáveis e rendeu historicamente
um olhar etnocêntrico que passou a demonizar o que lhe era desconhecido. Foi por
essa razão que os terreiros tiveram que desconstruir para construir novos
sentidos a fim de serem enxergados de fato como legitimadores e também
responsáveis por contribuírem com a formação da identidade do povo brasileiro.
É
por isso que não colocamos o processo de patrimonialização dos terreiros de
candomblé, apenas como uma boa vontade dos que são responsáveis por gerir os
órgãos estatais de reconhecimento e preservação dos bens culturais. Até se
chegar ao tombamento das casas tradicionais de candomblé, é preciso se
reconhecer o processo e os caminhos trilhados pelos terreiros, bem como suas
estratégias no campo cultural que influenciou e influencia diretamente o
fenômeno religioso.
Nesse sentido não podemos colocar os terreiros de candomblé
como espaços que foram beneficiados pela cultura acadêmica, letrada ou até mesmo
favorecidos pelas figuras políticas no processo de conquista e reconhecimento da
sua importância na composição do patrimônio cultural brasileiro. É preciso
salientar que os terreiros são espaços múltiplos e principalmente de cultura e
educação, um espaço que é responsável também por formar “cabeças”, orientando no
ensino informal ou até mesmo formal, como foi o caso do Ilê Axé Opô Afonjá, que
inaugurou a Escola Municipal Eugenia Ana dos Santos dentro do terreiro e se
tornou uma referência na cidade de Salvador.
Então quando falamos anteriormente
que o processo de reconhecimento e de ressignificação é de dentro para fora,
devem ser levados em consideração os indivíduos que passam pelo terreiro de
candomblé, se não pela condição de sujeito religioso, mas pelo respaldo que
encontra nesse espaço, enquanto um lugar também de lazer que serve a comunidade
no qual está inserido, e pela função social. Um exemplo da importância do
terreiro de candomblé numa comunidade pode ser sentido nessa fala,
“Eu sou criado em terreiro. Médico de pobre é pai de santo, em último caso você ia ao médico. Hoje você vai ao psicólogo. Psicólogo de pobre era o cinto, o chinelo e uma boa macumba para tirar o (risos)...não tinha isso não. Quando você tem mais poder de grana, a religião fica um pouco de lado, quanto mais rico, mais descrente. Me desculpe, mas eu vejo assim” (5)
No comentário descrito, podemos
perceber o papel que ocupa o espaço religioso no seu meio social, orientando,
não comportando apenas um lugar de experiências religiosas. O líder religioso
representa não só o mentor espiritual, mas também aquele que zela pelo bem estar
individual e coletivo dos que se agregam. Foi pela sua influência que os
terreiros de Candomblé passaram a atuar no fortalecimento e no empoderamento da
identidade do negro, formando não apenas religiosos, mas também multiplicadores
da cultura apreendida no espaço sagrado: a linguagem ritual, as danças, as
músicas, a culinária, as vestimentas, o comportamento, enfim uma série de
elementos próprios e características que no conjunto definem a identidade
afro-religiosa e extrapolava o espaço físico.
Foi a partir da disseminação dessa
cultura de terreiro que as religiões de presença africana, mais precisamente o
Candomblé, passou a ser visto com outros olhos, ganhando uma dimensão cultural e
estética de valorização. Foi num período que antecedia a década de 1980, período
de tombamento do Ilê Axé Iyá Nassô Oká, que os terreiros já vinham se
organizando e dando corpo a uma reafricanização. Quanto a essa fase o museólogo
Raul Lody esclarece que,
Na década de 70 surge com eficácia semântica e simbólica o rótulo afro para designar patrimônio africano no Brasil e, especialmente, identificar nas manifestações consagradamente afro-brasileiras um certo purismo africano. Germinalmente, um viço revivalista/reafricanizador vai tomando corpo nos movimentos políticos de grupos ativamente dispostos a retomar conceitos, rever conceitos e transformar socialmente visões cristalizadas sobre o negro no Brasil (LODY, 2006.p.12)
É a partir dessa reformulação e do repensar
da cultura afro-brasileira, dos seus bens que começa a surgir o movimento de
afirmação da identidade do negro que tinha nos terreiros o seu esteio, sendo
também sua mola propulsora. E não se tinha solo mais fértil, que o da Bahia,
para crescer esse movimento. Foi através da música que a cultura de terreiro
passou a ganhar dimensões maiores divulgando e ressignificando o candomblé
enquanto religião. Dorival Caymmi (1914-2008) é um dos grandes nomes da música
brasileira que destaca aspectos da cultura negra em suas composições.
Filho de
um descendente de italianos por parte de pai e descendentes de africanos por
parte da mãe, Caymmi compôs clássicos como: O que é que a baiana tem?; Dois de
fevereiro; Rainha do Mar; Suíte de pescador; Canto de Nanã e tantas outras
composições que narram o cotidiano dos terreiros de Candomblé.
Dorival Caymmi
conhecia de forma íntima o ambiente religioso, o universo da cultura Jeje-Nagô,
não era apenas um curioso ou simpatizante. O cantor fazia questão de declarar
sua fé nos Orixás. Como afirmou em entrevista “Caymmi por ele mesmo: Lendas e
crenças de um Obá de Xangô”, concedida a Rádio Cultura Brasil:
O que entra aí é uma influência que vem desde a infância, quando eu me entendi por gente (...) eu me vi cercado pelas minhas origens(...). Aquelas mulheres de saia com cheiro de quem masca raiz de dandá, fumo de rolo, um cheiro de patchouli naquela roupa de baixo, branca, bem lavada (...) aquele cheiro está impregnado da minha infância, na minha vida. Então vem sempre ligado a história do Candomblé. Eu por decisão resolvi ser filho de santo e pedir os jogos de Mãe Menininha. (...) Eu resolvi que ia deitar para fazer o santo. Me deitei e fui eleito como filho de quatro Orixás: Xangô, Oxalá, Yemanjá e Oxun (6)...
Tendo sua primeira iniciação feita
por Mãe Menininha do Gantois, Caymmi estreitou relações com a Iyalorixá, por
quem nutria respeito e admiração. Mesmo sendo iniciado no Gantois, os caminhos
tomados pelo cantor o levaram para o Ilê Axé Opô Afonjá, sendo iniciado pela
segunda vez por Mãe Ondina, a quarta Iyalorixá a assumir o terreiro em 1969.
Mais do que cantar, Caymmi fazia parte de um seleto grupo de artistas, entre
eles Jorge Amado e Carybé, “crias de terreiro”, filhos de santo, que não estavam
interessados apenas em apresentar as riquezas presentes na cultura
afro-brasileira, mas principalmente em reafirmar valores religiosos e contribuir
assim no processo de desconstrução e construção de uma nova identidade para o
Candomblé.
Sendo filho de Santo do Terreiro Opô Afonjá, Dorival Caymmi conhecido
pelo título honorífico de Onikoyi, se confirmou como um dos Obás de Xangô (7),
cargo de extrema responsabilidade dentro do universo sagrado fundado por Mãe
Aninha, primeira Iyalorixá do terreiro. Na composição Caymmi declara sua fé ao
Orixá Xangô e mostra sua perene relação com candomblé e a extensão a relação
familiar.
Em suas cantigas não é apresentada apenas a sua relação individual com
o sagrado, mas principalmente a relação que se dá com o coletivo. Entre as
tantas dezenas de músicas o cantor e religioso apresenta não só as crenças e os
mitos, como também a sua culinária. A forma das composições e a riqueza de
detalhes com que o cantor descreve os bens culturais produzidos pelas
comunidades de terreiro e os seus modos de fazer estabelece uma relação de
intimidade com o universo da cultura dos terreiros jeje-nagô. Um exemplo disso
são as receitas servidas aos deuses que se tornaram tão comuns e conhecidas da
culinária popular, entre elas Acaçá, A preta do acarajé e Vatapá.
Sendo um dos
elementos mais importantes dentro do candomblé, a culinária foi um dos
principais atributos utilizados de forma coerente para se divulgar elementos da
cultura africana e religiosa que por muito tempo foi rechaçada. Caymmi em suas
canções não tratava apenas do dendê e da pimenta, tratava também de conflitos
presentes na cultura brasileira, que por muito tempo foram silenciados. A
exortação ao Vatapá é quase uma Ode a identidade, pois é a nêga baiana quem faz
a comida e principalmente é ela que conhece as iguarias e domina a arte de
encantar através da comida. É ela quem sabe mexer. A utilização das palavras e o
jogo que Caymmi emprega em seus sentidos também são dúbios, além do “mexer”,
sentido de manusear, ele emprega também o sentido da expressão corporal, do
gingado, do samba. Essa não é uma relação despretensiosa e os ingredientes se
unem para dizer qual sua origem. Pensando nas relações entre o fazer, o comer e
seus ingredientes, quando se trata das tradicionais comidas de terreiro, Raul
Lody esclarece que:
O dendê é, sem dúvida, umas das mais imediatas e eficazes marcas da África na mesa afro-brasileira. Funciona como uma espécie de síntese de todos os sabores africanos aqui preservados, e relembrados nos terreiros e também na ampla e diversa culinária, nas casas, nas feiras, nos mercados, marcando ciclos festivos, entre outros eventos sociais. Se uma África geral é assumida no dendê, então comer dendê é comer um pouco de África, trazendo-a assim, para a intimidade de um prato, de um ritual, de um gosto condicionado às civilizações e as histórias dos povos africanos. Reforçam-se laços e nutrem-se relações simbólicas a partir das gastronômicas (LODY, 1998. p.26-27).
Na
culinária, expressa nas cantigas de Caymmi, está presente a relação simbólica
que Lody destaca no trecho acima citado, são esses nuances que são revelados e
divulgados aos que compartilham dessa iguaria. O cantor faz com bastante rima e
poesia uma ligação com o universo simbólico da África presente no Candomblé.
Ao
longo de sua carreira tornou-se crescente o destaque dado não apenas aos bens
culturais, mas também os que produzem, os líderes religiosos. Um exemplo disso
foi a homenagem feita a Mãe Menininha do Gantois, por quem nutria um profundo
respeito, apresentando a muitos os atributos de uma das Iyalorixás mais
importantes da Bahia, levando a todo o Brasil. A “Oração de Mãe Menininha do
Gantois” vai de encontro ao papel de bruxa, feiticeira, mãe do diabo e tantos
outros termos pejorativos que foram empregados para definir “mãe de santo”. Em
poucos versos Maria Escolástica da Conceição Nazaré é definida:
Ai! Minha mãeMinha mãe MenininhaAi! Minha mãeMenininha do GantoisA estrela mais linda, heinTá no gantoisE o sol mais brilhante, heinTá no gantoisA beleza do mundo, heinTá no gantoisE a mão da doçura, heinTá no gantois ...
A música feita para
celebrar os 50 anos de Mãe Menininha, juntamente com o disco do cantor, deu
grande repercussão não apenas no país. “O sol mais brilhante” foi realmente o do
Gantois, a mãe zelosa, acolhedora e amável está presente na letra e
consequentemente também é uma alusão a toda uma casta de Iyalorixás que fizeram
da Bahia “A cidade das mulheres” como disse Ruth Landes “Eram as mulheres que
canalizavam a vida das gentes na Bahia” (2002, p.21), já que a sacerdotisa era
bisneta, sobrinha e filha de também sacerdotisas que contribuíram no
fortalecimento do culto. A representação da grande mãe que conseguia reunir dos
homens mais simples aos mais poderosos do Brasil com naturalidade e sabedoria,
assim era vista Mãe Menininha por muitos. A poesia de Caymmi na década de 1970
do século XX contribuiu registrar e divulgar ainda mais a importância da
Iyalorixá como símbolo religioso que unia toda a Bahia mas os diversos credos.
Na diáspora religiosa, Mãe Menininha conseguiu ser uma intercessão entre os
conflitos existentes na Bahia, num momento crítico de perseguição ao Candomblé.
No período em que qualquer ruído de tambor era proibido, a Iyalorixá teve que
agir com muita diplomacia para sustentar sua Casa de Candomblé e também acabou
por estender uma influência aos demais que necessitassem de sua proteção.
COM O AFOXÉ O CANDOMBLÉ VAI A RUA
Ainda tendo a música como um carro chefe responsável por divulgar a cultura
afro-religiosa e disseminar os costumes e as tradições do Candomblé, cantando os
encantos de Mãe Menininha, tivemos uma canção que se tornou quase que um hino da
Bahia, “É D’Oxun”, composição de Gerônimo e Vevé Calazans vindo coroar a
Iyalorixá como “Mãe da Bahia”. E não por acaso ela carregava em seu arquétipo os
atributos da grande Iyabá das aguas doces, Oxun, Deusa responsável pela
fertilização, a mulher vaidosa que acalma e acalenta os seus filhos. A música é
carregada de uma simbologia que traduz o universo religioso candomblecista, no
qual a mulher, historicamente, deteve o poder de liderar e educar dentro dos
terreiros. Assim canta-se:
Nessa Cidade Todo Mundo É d'oxumHomem, Menino, Menina, MulherToda Essa Gente Irradia MagiaPresente Na Água DocePresente n'água SalgadaE Toda Cidade BrilhaSeja Tenente Ou Filho De PescadorOu Importante DesembargadorSe Der Presente É Tudo Uma Coisa SóA Força Que Mora n'águaNão Faz Distinção De CorE Toda A Cidade É d'oxumÉ d'oxum, É d'oxum, É d'oxum,Eu Vou Navegar, Eu Vou NavegarNas Ondas Do Mar, Eu Vou NavegarÉ d'oxum, É d'oxum
Foi em 1985, lançada um ano antes do falecimento de Mãe
Menininha, que a canção foi trilha sonora da minissérie Tenda dos Milagres
(adaptação do romance de Jorge Amado) e começou a embalar os afoxés da Bahia.
Tratando até o presente momento das estratégias de afirmação e legitimação do
Candomblé enquanto religião, e principalmente, no que tange a valorização dos
bens culturais produzidos pelas comunidades de terreiros entre saberes e
fazeres, o afoxé é um dos elementos que mais contribuiu no processo de
construção de novos sentidos.
A necessidade de desconstruir o olhar do
colonizador que marcou a cultura afro-religiosa como demoníaca, algo que deveria
ser combatido, levou o candomblé para a rua ganhando assim novas dimensões. Foi
por essa razão que já no século XIX começou-se de forma ainda tímida a organizar
os blocos formados por homens negros no carnaval. Mas foi nas décadas de 1970 e
1980 que os afoxés viveram um período de maior ênfase, se popularizando e se
disseminando.
Quase todos os membros dos afoxés se vinculam ao culto. Seus músicos são alabês, suas danças reproduzem a dos orixás, seus dirigentes são babalorixás (...), e o ritual do cortejo obedece à disciplina da tradição religiosa. Os afoxés trouxeram para o espaço do carnaval o repertório musical e a estética dos candomblés (GUERREIRO, 2000, p.71)
Aproveitando os embalos do
carnaval, os religiosos passaram a aproveitar o momento para cantar, rezar e se
divertir. Não tão distante da tradição religiosa do Candomblé, aonde muitas
vezes o sagrado e o profano são divididos por linhas tênues, os afoxés são a
junção do cantar e rezar de um modo mais livre. Nesse sentido não fica muito
distante dos rituais que acontecem nos terreiros, sendo também denominado por
alguns como Candomblé de rua.
Partindo do seu sentido etimológico o termo afoxé
tem algumas definições, porem iremos destacar que:
O termo afoxé provem da língua Iorubá: afose ou de influência sudanesa sobre o banto sobre o banto afohsheih – recurso mágico que concede ao indivíduo o poder da palavra, o poder de ordenar e não ser desobedecido. Estruturalmente divide-se em três partes, a – prefixo nominal; fo que significa pronunciar e – xe que significa realizar-se. Conforme o estudioso baiano Antônio Risério, afoxé quer dizer o enunciado que faz acontecer, uma espécie de palavra encantada, uma fórmula mágica (NDAGANO, 2010, p.14)
A partir da citação de Ndagano, podemos perceber que no sentido da
palavra, independentemente de sua variação ou influencia estará implícito o
sentido de “poder”, estando associado a sentido de axé, sendo seu significado
“poder ou palavra que faz acontecer”.
Foi com essa intenção “de fazer acontecer”
que os homens ligados aos terreiros de Candomblé começaram a ir as ruas afim não
de só garantir seu espaço na festa profana, como também forma estratégica de
mostrar o poder da cultura afro-religiosa.
No afoxé os instrumentos tocados nas
festas religiosas também ganham destaque, atabaques, agogôs e xequerês ganham
notoriedade, sendo responsáveis também por embalar ritmos como Ijexá, um dos
mais presentes nos cortejos.
As roupas também fazem parte do contexto festivo. É
possível perceber as cores que fazem parte das indumentárias dos Orixás, muitas
vezes uma reprodução dos mesmos, sendo presentes na festa. Esse é um conjunto
que faz dos afoxés manifestações peculiares do universo cultural e religioso do
Candomblé. Além dos elementos musicais e indumentárias, e a performance, tem
também rituais típicos como o da oferta do padê.
Sendo um ritual que tem como
fundamento saudar Exú, a fim de pedir permissão a esse Orixá, tendo em vista que
na teogônia nagô ele é o senhor dos caminhos, o ritual do padê também parte do
princípio de que ele precisa ser alimentado para garantir a paz e um bom
andamento da festividade. Essa é uma preocupação inicial de todos os afoxés. Já
em meados da década de trinta, mais especificamente em 1935, o Ilê Axé Opô
Afonjá criou o Afoxé Pai Burokô, sob a organização do mestre Didi.
Burokô originou-se de um tronco de um araçazeiro que tinha a aparência de um homem, encontrado por Didi, Deoscóredes M. dos Santos, atualmente Alapini, Supremo Sacerdote do culto dos egunguns, ancenstrais masculinos, naquele tempo um menino que brincava de picula na roça de São Gonçalo (...). Aquele toco foi venerado pelos meninos que, depois de ouvirem Mãe Aninha, lhe deram o nome de Burokô, tornando-se patrono da troça carnavalesca. Em 1942, sob a direção dos fundadores (...) o Burokô atingia a maioridade. No sábado fizeram as obrigações, que incluía oferenda ao Orixá Exú, senhor dos caminhos, a fim de que ele protegesse a brincadeira, livrando-a de todo mal (LUZ, 2002, p.110-11).
A história e a
trajetória dos afoxés na Bahia é longa e remete a tempos de luta pela
sustentação da cultura africana e religiosa no Brasil e passa pelas terreiros de
Candomblé, que sempre estiveram comprometidos em sua organização, a exemplo do
Ilê Axé Opô Afonjá. É uma militância que não vem de intelectuais acadêmicos e
nem do Estado, antes de tudo é resultado de uma frente política liderada pelas
comunidades de terreiro.
Entre os muitos afoxés presentes na cidade de Salvador,
um dos mais conhecidos e populares hoje, é o Afoxé dos Filhos de Gandhy, que
chama atenção pelas peculiaridades. Tendo como finalidade exaltar a paz, o bloco
faz uma fusão entre elementos da cultura indiana, e a cultura afro-religiosa. Se
por um lado tem a homenagem a figura do ativista Mahatma Gandhi, do outro lado
tem a figura de Oxalá, Deus do branco, ambos com o mesmo objetivo, buscar a paz
e o equilíbrio. É justamente encontrando semelhanças nessas duas figuras que o
afoxé traz uma indumentária em forma de túnica na cor branca, lembrando Gandhi,
e o turbante e os colares nas cores azuis e brancos, presentes como elementos da
cultura Nagô.
Antes de sua saída do Largo do Pelourinho, não diferindo dos
outros afoxés, é feito o ritual de padê, pelos muitos homens que são adeptos do
candomblé e ganham as ruas embalados pelo som do Ijexá. As mulheres ficam a
margem do cortejo a espera de um colar, uma fruta ou até mesmo um banho de
alfazema.
Mesmo trazendo elementos da cultura indiana e que estão ligados à
figura do lendário Mahatma Gandhy, em sua essência, existe a predominância dos
ritmos e até mesmo rituais que dão visibilidade aos bens culturais que os ligam
ao universo do candomblé. A junção ainda dos distintos elementos possibilita
divulgar o respeito à tolerância religiosa, sendo um fator de grande importância
para as comunidades de terreiros.
Integrando os blocos de carnaval, e
acompanhando a difusão dos afoxés na década de 1970 e 1980, estavam alguns
gêneros musicais que contribuíram ainda mais na divulgação da cultura religiosa
do Candomblé, sendo eles o samba-reggae e o axé music.
O samba-reggae também foi
um movimento que saiu de dentro dos terreiros. A mistura do samba aliado ao
reggae jamaicano, criado pelo músico Neguinho do Samba (1955-2009), fundador e
criador do grupo Olodum, fez parte de um movimento afro-religioso que usava a
música como componente principal para diminuir os conflitos gerados no campo
sociocultural e religioso que historicamente desfavoreceu o povo negro. Na obra
de Almerinda Guerreiro, a trama dos tambores: a música afro-pop de Salvador,
Neguinho revela: “Minha escola foi o candomblé, meus irmãos são ogãs, meu pai
também, ele tocava bongô. A gente teve uma formação musical diferente, antiga,
então eu acho que é uma coisa de universo mesmo, a gente é o que merece ser”
(GUERREIRO, 2000, p.61).
Entre as bandas de samba-reggae mais conhecidas está a
banda Reflexus, oriunda do bairro Cabula, onde encontra-se o Ilê Axé Opô Afonjá,
foi uma das primeiras a fazer sucesso fora da Bahia e a ganhar visibilidade no
cenário da música nacional. As letras do seu reportório colocavam em destaque
não apenas a cultura negra afro-brasileira, mas também a africana, participando
até mesmo de movimentos políticos. Foi dessa forma que a Banda cantou pela
libertação de Nelson Mandela e se posicionou contra o movimento do Apartheid
(8). Contudo, mais forte que a exaltação a cultura afro-brasileira foi o
destaque dado ao universo religioso do povo Nagô.
As músicas da Banda Reflexus
sempre vieram com letras carregadas de elementos simbólicos e representativos do
candomblé que contribuíram na disseminação da religiosidade dos povos de
terreiro e no seu enfrentamento ao racismo religioso. Foi assim que conseguiu
influenciar e chamar atenção para a problemática enfrentada pelo negro
candomblecista.
Entre os vários artistas das comunidades periféricas de
Salvador, de onde surgiram os afoxés, o samba-reggae e os blocos afros, como o
Ilê Ayê, Olodum, Malê Debalê, Badauê, está a presença e a ligação com a tradição
afro-religiosa. Um aspecto que reforça ainda mais uma das principais
características dos terreiros, que é justamente a de educar, obviamente que uma
educação informal voltada para a reafirmação étnico-racial.
Como podemos
constatar, o tombamento do Ilê Axé Iyá Nassô Oká, não é um fato que acontece
isoladamente pela boa vontade do Estado, ou de uma elite branca
intelectualizada, em reconhecer um terreiro de Candomblé como espaço que deva
ser patrimonializado. Antes de tudo é resultado de um movimento histórico
encabeçado pelas próprias comunidades de terreiro, que acabam colocando em foco
a importância das religiões de presença africana na composição da identidade e
do patrimônio cultural brasileiro.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Partindo da interdisciplinaridade que a Ciências da Religião nos permite ter
quando vamos tratar do estudo e da pesquisa de campo, os bens e o patrimônio
cultural é só mais uma possibilidade que nos ajuda a compreender o fenômeno
religioso.
A necessidade de se falar e esclarecer, no contexto desse artigo,
acerca do conceito de patrimônio cultural e patrimonialização deve-se ao fato do
desconhecimento e do entendimento que esse conceito ganha quando passamos a
tratar de bens culturais produzidos pelas comunidades de terreiro, que ganham
uma dimensão de patrimônio sagrado.
O patrimônio cultural, quando nos referimos
aos bens constituídos pelo candomblé, ganha uma nova dimensão sendo referenciado
como patrimônio sagrado. Essa apropriação parte justamente das possibilidades
que o conceito acaba nos dando por ser polissêmico.
Passando aqui a tratar do
contexto inicial de como historicamente os bens produzidos pelas comunidades
afro-religiosa eram vistos, como bens uteis e dignos apenas de estarem em museus
para fins de estudo etnográfico e que faziam referência sempre a partir do olhar
etnocêntrico, no qual o patrimônio sagrado constituído pelo Candomblé foi
colocado como demoníaco. Partimos do princípio da necessidade que as comunidades
tiveram de ressignificar os seus bens para serem respeitados e tidos como
elementos de importância e influencia dentro da sociedade.
Assim partindo dessa
necessidade, de ressignificar, o candomblé enquanto uma religião organizada
passa a elaborar estratégias que visavam a valorização e a legitimação da
cultura afro-religiosa associadas ao empoderamento de seus fiéis criando um
sentimento de pertencimento.
Assim abordamos dentro do referido trabalho, que
até se chegar ao tombamento do primeiro terreiro de candomblé no Brasil, a Casa
Branca do Engenho Velho, houve um movimento político e religioso organizado
pelos terreiros de candomblé para garantir o seu lugar dentro da estrutura
social em que estavam inseridas as outras religiões.
Nesse contexto torna-se
importante falar dos terreiros de candomblé e da sua importância enquanto
espaços legitimadores de um poder simbólico capaz de mobilizar e de estruturar
sem utilizar a força ou violência física.
Aqui nós tratamos a patrimonialização,
como um processo que se inicia antes mesmo dos órgãos oficiais, que tem o poder
de instituir o bem como patrimônio cultural nacional. Esse processo foi do qual
se apropriaram os terreiros de candomblé, levando a cultura de terreiro para
toda a sociedade e imprimindo uma importância, seja nas letras das músicas
compostas pelos nomes que se fizeram conhecer, seja pelos blocos de Afoxé ou até
mesmo movimentos musicais encabeçados pelos afro-religiosos.
NOTAS:
Este texto foi originalmente publicado: SANTOS, Cláudio de Jesus. Os terreiros
de candomblé como patrimônio cultural e sua nova representação no campo
afro-brasileiro. In:___Religião e cultura: hibridismos e efeitos de fronteira.
BONFIM, Luiz Américo Silva (Org.) – Curitiba: CRV, 2020.
*Museólogo do Museu
Afrocultural de Sergipe e Mestre em Ciências da Religião pela Universidade
Federal de Sergipe. E-mail:claudiomuseologo@yahoo.com.br
** Professor do
Departamento de Ciências Sociais, UFS e Professor do Programa de Pós-Graduação
em Ciências da Religião, da mesma instituição. E-mail: bricesogbo@hotmail.com
1.Quanto a legislação que define e regulamenta ver o Decreto nº 3.551, de 4 de
agosto de 2000 que institui o registro de bens culturais de natureza imaterial
que constituem Patrimônio Cultural Brasileiro, cria o Programa Nacional do
Patrimônio Imaterial.
2. Terreiro fundado por Mãe Aninha de Afonjá no ano de
1910. Localizado na Rua Direita de São Gonçalo do Retiro, 557, Bairro do Cabula,
na capital Salvador, Bahia
3. Após a morte de Mãe Aninha foi a quarta Iyalorixá
na linha de sucessão a liderar o Opô Afonjá (1976-2018). A referida Iyalórixa
faleceu no ano de 2018 em meio ao processo de desenvolvimento dessa pesquisa.
4.
Segundo Pierre Bourdieu é um poder de construção da realidade que tende a
estabelecer uma ordem gnosiológica: o sentido imediato do mundo (e, em
particular, do mundo social) (BOURDIEU, 2007, p. 09).
5. Entrevista do cantor
Zeca Pagodinho concedida ao Fantástico no dia 07/11/2011. Acesso ao link:
https://www.youtube.com/watch?v=NHkc-rUIsJk
6. WEBER, Eduardo. Lendas e crenças
de Um Obá de Xangô. Site Rádio Cultura Brasil. Disponível em: <
http://culturabrasil.cmais.com.br/programas/caymmi-por-elemesmo/arquivo/lendas-e-crencas-de-um-oba-de-xango>.
Acesso em 28 fev. 2019
7. Cargo de extrema importância dentro do Ilê Axé Opô
Afonjá, fundado por Mãe Aninha.
8. Movimento de segregação racial instaurado
oficialmente no final dos anos quarenta, mais especificamente em 1948, pelo
Partido Nacional. Foi o período em que a África do Sul passou a sofrer grandes
conflitos entre negros e brancos. No ano de 1980 algumas leis começaram a ser
revogadas devido ao posicionamento da ONU e pela luta da população oprimida.
REFERÊNCIAS:
BOURDIEU, Pierre. O Poder Simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand, 2007.
GUERREIRO, Goli. A trama dos tambores: a música afro-pop de Salvador, 2000
HOBSBAWM, Eric; RANGER, T (Orgs). A invenção das tradições. Paz e Terra, 2002.
NOGUEIRA, Antônio Gilberto Ramos. Por um Inventário dos Sentidos: Mário e
Andrade e a concepção de patrimônio e inventário. São Paulo. Hucitec: Fapesp,
2005.
LODY, Raul. Pencas de balangandãs da Bahia: um estudo etnográfico das
jóias-amuletos. Rio de Janeiro: Instituto Nacional do Folclore, 1998
NDAGANO,
Biringanine. Penser ler carnaval: variations, discours et représentations. 2010
SANTOS, Edmar Ferreira. O poder dos candomblés: perseguição e resistência no
Recôncavo da Bahia. Salvador: EDUFBA, 2009.
VELHO, Gilberto. Patrimônio,
Negociação e Conflito. In: Antropologia e Patrimônio Cultural: Diálogos e
Desafios Contemporâneos. Org. FILHO, Manuel; BELTRÃO, Jane; ECKERT, Cornélia. –
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RABELO, Miriam C. M. Enredos, feituras e modos de
cuidado: dimensões da vida e da convivência no candomblé. Salvador: EDUFBA,
2014.296 p.
RODRIGUES, Raimundo Nina. O animismo fetichista dos negros baianos;
apresentação e notas de Yvonne Maggie, Peter Fry. Ed. Fac-símile. Rio de
Janeiro: Fundação Biblioteca Nacional/ Editora UFRJ, 2006 [1896 e 1897].