sexta-feira, 6 de junho de 2025

OS TERREIROS DE CANDOMBLÉ COMO PATRIMÔNIO CULTURAL E SUA NOVA REPRESENTAÇÃO NO CAMPO AFRO-RELIGIOSO

Cláudio de Jesus Santos*
 Hippolyte Brice Sogbossi** 

    Este artigo é resultante de um dos capítulos da dissertação de mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião da Universidade Federal de Sergipe, intitulada “Não Chuta que é macumba: a patrimonialização do Ilê Axé Opô Afonjá e a sua contribuição no fortalecimento de uma identidade afro-religiosa no Brasil”, orientada pelo Professor Dr. Hippolyte Brice Sogbossi e desenvolvida no período de 2017-2019 com o apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) e Fundação de Apoio a Pesquisa e Tecnologia do Estado de Sergipe (FAPITEC).
 Com a finalidade de alcançarmos o objetivo proposto fizemos uso de uma revisão bibliográfica aliada ao método etnográfico tendo como lócus de estudo o Ilê Axé Opô Afonjá, situado no Estado da Bahia, estabelecendo uma ação metodológica interdisciplinar entre Ciências da Religião e outros campos do conhecimento. 

Partindo do redimensionamento cultural e social que os terreiros de candomblé ganharam no século XX com o título de patrimônio nacional, inaugurado pelo tombamento da Casa Branca do Engenho Velho (Ilê Axé Iyá Nassô Oká), abordaremos o conceito de patrimônio cultural e a dimensão que ele ganha quando se trata dos bens produzidos pelas comunidades de terreiro, como se deu esse processo de patrimonialização e as estratégias para a legitimação de um “patrimônio sagrado”.
 Assim iniciaremos as primeiras linhas abordando o contexto histórico dentro do qual foi instituído o tombamento do primeiro templo religioso e as discussões em torno das questões religiosas significativas presentes no processo de patrimonialização na década de 1980. 

Com a prática do tombamento chamamos atenção para as transformações advindas desse gesto político nas últimas duas décadas do século XX. Se por muitos anos o candomblé não teve espaço para poder se afirmar enquanto religião e se fazer reconhecer, saindo da marginalização, agora o cenário passa a ser modificado. Assim, as comunidades de terreiro passam a criar mecanismos de desconstrução do olhar colonizador privilegiando práticas de materialização do sagrado. 
É sob a ótica do patrimônio que analisaremos a desconstrução do olhar colonizador sobre a cultura religiosa do povo negro bem como a demonização dos bens culturais produzidos pelas comunidades de terreiro que passa a ganhar novas representações.


  A DIMENSÃO DO CONCEITO PATRIMÔNIO CULTURAL QUANDO TRATAMOS DOS BENS PRODUZIDOS PELAS COMUNIDADES DE TERREIRO

“Devagar com o andor que o santo é de barro”. É a expressão mais adequada e sensata que podemos utilizar para expressar o quanto é frágil e ao mesmo tempo amplo o conceito de patrimônio, quando tratamos dos bens culturais produzidos por uma comunidade religiosa, nesse caso o Candomblé.
 Antes de mais nada, falar sobre patrimônio aliado ao campo religioso e a construção de novos sentidos implica em saber o que na verdade tratamos como patrimônio, uma vez que o termo tem uma abertura polissêmica. É evidente que se faz necessária uma contextualização histórica e até mesmo uma prévia definição. Para iniciarmos nosso diálogo, tratando do termo, Fançoise Choay diz que 

• “Patrimônio. Esta bela e antiga palavra estava, na origem, ligada às estruturas familiares, econômicas e jurídicas de uma sociedade estável, enraizada no tempo e no espaço. Requalificada por diversos adjetivos (genético, natural, histórico, etc.) que fizeram dela um conceito ‘nômade’, ela segue hoje uma trajetória diferente e retumbante (CHOAY, 2006, p.11) 

    Como bem esclarece de forma direta e imediata, o sentido de patrimônio teve em sua origem uma ligação a bens de família, o que justifica bem a raiz do termo, vindo do latim patrimonium. Os bens a quem por direito pertenciam.
     Quando se trata da seleção dos bens culturais, ou seja, do conjunto de objetos materiais que agregam os valores históricos e artísticos de uma comunidade, o que interessa é justamente saber a quais grupos pertencem tais bens, quem representa, e qual herança será perpetuada, para assim obter o status de patrimônio por parte dos órgãos oficiais responsáveis pela preservação. 
Foram esses bens selecionados que contribuíram para um ideal de nação, que começou a ser forjada nos primeiros anos da década de 20 do século XX, buscava-se então um “acervo de brasilidade”, uma nação imaginada que seria concretizada pelo patrimônio. Essa seleção dos bens culturais tem uma relação com o que Eric Hobsbawn chama de processo de formalização ou ritualização caracterizado por referir-se ao passado tendo em vista a invenção de uma tradição (HOBSBAWN,2002, p.13), nesse caso formalizada pela patrimonialização. Aqui entendemos patrimonialização como o processo de identificação, seleção, registro e preservação de bens culturais que passam a ganhar status patrimonial. 
    Aqui o patrimônio que tratamos é o cultural, o termo já revela a noção que pretendemos abarcar em nossa discussão. Não se trata de um patrimônio constituído de pedra e cal, e nem tampouco utilizaremos as dimensões de material ou imaterial (1) , categorias comumente utilizadas como forma de distinguir bens palpáveis, visíveis de impalpáveis, invisíveis, tratando-se assim de costumes, valores e incluindo até mesmo tradição. Tratar o patrimônio dentro dessas duas categorias, diferenciando-as é quase que inútil dentro do contexto afro-religioso, uma vez que os bens culturais produzidos pelas comunidades de terreiros têm sua relevância nessas duas dimensões. O material é tão importante quanto o imaterial, o qual será traduzido em costumes, modos de fazer e contribui ainda na manutenção da tradição religiosa.

 A respeito da definição do conceito, Por patrimônio cultural pode-se entender aquilo que se dá pela diferença, que um grupo social considera como sua cultura própria, que sustenta sua identidade e o diferencia de outros grupos, incluindo-se aí a identificação com os bens físicos, monumentos, objetos, e também linguagens, conhecimentos, tradições, modos de usar os bens e os espaços físicos e de se organizar no espaço físico-social, que se constitui e se transforma no tempo (CHUVA apud NOGUEIRA. 225-226). 

    Como podemos observar o conceito utilizado é abrangente e não comporta limitações, é a partir dele que nos guiaremos aliando-o ao campo religioso. Além do conceito se faz importante também ressaltar a função que o patrimônio cultural exerce, que é justamente o de comunicar. É a partir da comunicação que são reforçados valores. É dentro desse aspecto que consideramos o Ilê Axé Opô Afonjá (2) como um dos maiores espaços religiosos, se não o maior, a impulsionar valores estéticos e éticos do candomblé através de sua produção cultural aliada à sua dimensão midiática. Segundo Raul Lody:

 Valorativamente, são conferidas aos terreiros a guarda, a proteção e a manutenção de conjuntos expressivos das culturas africanas, que, coordenadas pelos princípios religiosos, conseguiram preservar idiomas, tecnologias, música, dança, gastronomia, teatro, liturgias e sistemas de mando e poder intramuros e referências complexas da sociedade total (LODY, 2006, p.13).

 Partindo desse princípio, como bem relata Lody, percebemos a importância dos terreiros na guarda, preservação e comunicação dos bens produzidos. Ainda que o processo de seleção dos bens, que se deseja patrimonializar, esteja sob o encargo de profissionais autorizados por parte dos órgãos oficiais – que garantem o título oficial de patrimônio cultural perante a sociedade – existiu e existe uma organização por parte das comunidades religiosas, no sentido de garantir e atribuir os valores e significados, tornando-o significativos enquanto suporte de memória. Ou seja, é a comunidade religiosa, que faz do objeto um bem de valor cultural e dá o sentido para que se torne patrimônio. Para se fazer entender a importância da comunidade religiosa no processo de patrimonialização e a sua função de comunicar, é necessário tornar explicita a diferença entre bem cultural e bem patrimonial. Assim,

 Ao se considerar um bem como bem cultural, ao lado do seu valor utilitário e econômico (valor de uso enquanto habitação, local de culto, ornamento etc; e valor de troca, determinado pelo mercado), enfatiza-se o seu valor simbólico, enquanto referência de significações da ordem da cultura. Na seleção e no uso dos seus materiais, no seu agenciamento, nas técnicas de construção e elaboração, nos motivos, são apreendidas referências ao modo e às condições de produção desses bens, a um tempo, a um espaço, a uma organização social, a sistemas simbólicos. No caso dos bens patrimoniais selecionados por uma instituição estatal, considera-se que esse valor simbólico refere-se fundamentalmente a uma identidade coletiva, cuja definição tem em vista unidades políticas (a nação, o estado, o município). (FONSECA, 2009, p.42). 


    A partir do entendimento do significado de bem cultural podemos perceber a importância da comunidade no processo de eleição do bem que está em vias de ganhar o status de patrimônio. Com isso podemos enxergar que a atribuição de valores e sentidos ao bem patrimonializado não é dado pelo Estado, como muitos entendem, apenas é reconhecido como digno de ser preservado. 
    Oficialmente, a nível nacional, o órgão responsável pela preservação do patrimônio cultural brasileiro é o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN). Criado em meio a essa política de valorização dos bens culturais o IPHAN tinha como um de seus objetivos contribuir na formação de uma identidade nacional a partir de uma memória eleita. Partindo desse princípio Antônio Gilberto Ramos Nogueira salienta que:

 Na formação do pensamento preservacionista encontra-se a ideia de um patrimônio histórico e artístico nacional que atenda à necessidade daqueles intelectuais que se colocavam na “missão” de forjar uma nação e um povo pela vertente da cultura e identidade nacional (NOGUEIRA, 2005, p.243). 

Foi com essa missão que Mario de Andrade recebeu o convite do então Ministro da Educação e Saúde Gustavo Capanema, no ano de 1936, no governo do presidente Getúlio Vargas. No ano de 1937, o anteprojeto de lei criado pelo modernista, foi promulgado como Decreto-Lei nº 25, institucionalizando as práticas de cunho preservacionistas. 
    A metodologia de preservação utilizada pelo IPHAN se dá através do tombamento, sendo essa a ferramenta de reconhecimento que determina a proteção do bem cultural eleito, efetuando assim o processo de patrimonialização. 
    Contrastando com esse processo de representação e identidade, o candomblé estava vivendo um período ainda de turbulência e perseguição política. Segundo Edmar Ferreira Santos, seguindo os passos em sua pesquisa de estudos de pesquisadores consagrados como Roger Bastide, Edson Carneiro, José Reis, afirma que “os anos que seguiram a década de 1930 acrescentaram outros ingredientes à complexa trama de perseguição aos candomblés de Cachoeira e imediações” (SANTOS, 2009, p.187-188). Diante desse quadro a eleição de um bem cultural ligado à memória da população afro-religiosa estava distante de se tornar patrimônio cultural. O lema era destruir. 
    Após anos de afirmação do IPHAN com as práticas preservacionistas voltadas para o patrimônio religioso cristão, mais precisamente colonial barroco, os terreiros de candomblé passam a disputar espaços de legitimidade e representação na década de 1980. 
    É importante salientar que as conquistas adquiridas por meio dessas disputas não é apenas resultado de um movimento de fora para dentro dos terreiros, ou seja, de intelectuais que passam a colocar as religiões de presença africana numa posição de relevância, em seus estudos, a exemplo de Ruth Landes (1947), Pierre Verger (1957), Roger Bastide (1971), Joana Elbein (1984), entre outros. Mas principalmente é um movimento que se dá de dentro para fora, como parte de uma estratégia, abrindo as portas do terreiro e recebendo esses pesquisadores. 
    Entre pesquisadores, fotógrafos, poetas e tantos outros intelectuais ocuparam importantes posições dentro do Candomblé. Dentre eles destaca-se Jorge Amado. Como relata a Iyalorixá Maria Stella de Azevedo Santos (3), última sacerdotisa a comandar o Opô Afonjá, o escritor foi o responsável por estabelecer um contato, através de Osvaldo Aranha, com o então presidente Getúlio Vargas, que a seu pedido conseguiu sancionar o Decreto-Lei número 1.202, no qual dava liberdade para a prática da religião, que até então era criminalizada. 
    No ano de 1984 o Ilê Axé Iyá Nassô Oká, conhecido como Casa Branca do Engenho Velho, entra na briga pelo reconhecimento do terreiro com o patrimônio cultural brasileiro. 
    O histórico de bens preservados pelo IPHAN era de um “patrimônio branco”, elitizado até então pela arquitetura nobre e estilizada. Tombar um terreiro de candomblé até então, significava patrimonializar bens que foram historicamente rejeitados. O discurso da brasilidade e a busca de uma identidade para a nação, até então, não comportava o patrimônio afro-religioso. 
    Nos relatos do antropólogo Gilberto Velho, responsável por ser o relator do processo, membro no ano de 1984 do Conselho do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, foi uma dura defesa na época, pois o tombamento da Casa Branca ia de encontro a política de preservação. Não se tinha aparentemente um prédio monumental. Para as pessoas que justificavam a sua importância era o sagrado. No entanto, não se tinha como tombar a religião, ainda mais uma religião que tornava-se aos olhos de muitos, fragilizada por não ter uma sustentação literária, sendo sustentada pela oralidade. Um feito quase que impossível.
     Com essa ação o IPHAN foi obrigado a repensar o sentido e os mecanismos de preservação, uma vez que o tombamento tinha como prerrogativas duas questões, o “engessamento” do bem móvel e o valor artístico. Nesse caso, como garantir a ausência de mudanças de um bem sujeito à vontade dos deuses? Qual arquitetura preservar dentro de uma estrutura simples, sem muitos recursos estéticos? Mediante tais questionamentos Gilberto Velho argumentou: 

Tratar-se de ‘um fato social, um terreiro em plena atividade, com seus fiéis, sacerdotes e ritual em pleno dinamismo’. Ao recomendar o tombamento, considerei chamar atenção para o fato de que o acompanhamento e supervisão da SPHAN deve, mantendo seus elevados padrões, incorporar uma postura adequadamente flexível diante desse fenômeno religioso (VELHO, 2007, p.250). 

    Sabiamente o intelectual antropólogo justificou o tombamento justamente na sua diferença, exortando a importância da atividade religiosa na construção e na dinâmica da identidade. Gilberto Velho reforça ainda a importância do movimento em prol do tombamento por parte das lideranças religiosas.
     Foi sustentando esse discurso, em meio a uma tensa discussão, que o terreiro foi tombado mediante a uma forte resistência da ala mais conservadora do Instituto. Assim no dia 31 de maio de 1984 chegou-se à decisão pela prática do processo de patrimonialização do Ilê Axé Iyá Nassô Oká, sendo homologado o efetivo tombamento no dia 27 de junho de 1986 e inscrito no Livro Arqueológico, Etnográfico e Paisagístico, bem como no Livro Histórico. 
    Após essa conquista, os bens culturais produzidos pelas comunidades afro-religiosas, e consequentemente os terreiros, passaram a ser “oficialmente” importantes espaços políticos de legitimação do “poder simbólico” (4) exercido pelo Candomblé, enquanto movimento religioso representativo de um grupo, na sociedade.
     A partir desse momento é preciso que tenhamos um olhar aguçado para as transformações advindas desse gesto político na década de 1980. Se por muitos anos o candomblé não teve espaço para poder se afirmar enquanto religião e se fazer reconhecer, saindo da marginalização, agora o cenário passa a ser modificado. Assim, as comunidades de terreiro passam a criar mecanismos de desconstrução do olhar colonizador privilegiando práticas de materialização do sagrado. 
    Quase uma década depois, o Ilê Axé Opô Afonjá, solicita o pedido de tombamento no ano de 1998. Diferentemente dos impasses que se sucederam na década de 1980, o acontecimento e a aprovação se dá de forma mais tranquila. Na ocasião o status de patrimônio adquirido pelo terreiro, se tornaria um presente a então Iyalorixá Stella Azevedo, por estar completando sessenta anos de iniciada no candomblé. Foi então no dia 28 de junho de 2000 que é inscrito no Livro do Tombo Arqueológico, Etnográfico e Paisagístico. 
    Numa ordem de não tão menos importância, o Ilê Iyá Omim Axé Iyámassê, o Gantois como é popularmente conhecido. Possuindo uma grande importância e estando entre um dos terreiros mais tradicionais da Bahia, conhecido nacionalmente quando esteve sob o comando de Mãe Menininha, o terreiro conserva em sua linhagem a sucessão matriarcal. 
    Citado por autores clássicos, como Roger Bastide, Nina Rodrigues, Edison Carneiro, Vivaldo da Costa Lima, entre outros, a casa de Candomblé foi fundada pela africana Maria Júlia da Conceição Nazareth, por meio de uma dissidência de sucessão da Casa Branca do Engenho Velho. Assim a africana de Abeokutá construiu um espaço para perpetuar os costumes religiosos do povo yorubá, comprando o terreno de Edouard Gantois, um traficante de escravos. Estando localizado em uma região de alto relevo, a sua posição se deu de forma estratégica, afim de se resguardar da repressão e perseguição policial na época. Sobre isso Nina Rodrigues relata 

Este terreiro do Gantois pode servir de modelo para uma ideia exata do que é um templo fetichista na Bahia, assim como em que consiste o candomblé, a grande festa anual. Tira ele o nome francês do antigo proprietário da chácara em que funciona, e fica quase a meio caminho do arrebalde do Rio Vermelho. Situado no alto de uma colina muito á prumo, o acesso a partir da linha de bondes que passa no vale, se faz por uma vereda sinuosa e íngreme, protegida em certa altura de degraus talhados no solo. No Gantois, o terreiro funciona num barracão, coberto de telha, e de paredes de taipa, que fica no centro de uma clareira ou roçado, sombreado de algumas árvores frondosas (RODRIGUES, 2006, p.51-52).


     Desde sua fundação, o terreiro permanece nessa mesma localidade, mesmo com as mudanças ocorridas na paisagem da cidade a casa de candomblé perpetua a tradição do culto aos orixás, mantido pela sua linhagem matriarcal. 
    O terreiro do Gantois foi fundado em 1849 por Maria Júlia depois do seu rompimento com a Casa Branca do Engenho Velho, após a disputa pelo trono e consecutivamente a sua perda. Após a morte da Yalorixá fundadora, segue o comando com sua filha Pulchéria Maria da Conceição Nazareth (1841-1918), a qual estava já preparando a sua sobrinha Maria Escolástica da Conceição Nazareth (1894-1986), a famosa Mãe Menininha do Gantois, para assumir o Ilê Axé. Com a súbita morte de Mãe Pulchéria, Mãe menininha fica impedida de assumir o trono devido a sua pouca idade, passando então a sua mãe Maria da Glória.
     Diferenciando-se das outras casas tradicionais como a Casa Branca do Engenho Velho e Opô Afonjá nas quais a escolha da sucessora se dá por meio do jogo de búzios, no Ilê Iyá Omim Axé Iyamassê (Gantois), a sucessão se dá pela linhagem familiar. Sendo também uma das estratégias de garantir a segurança do patrimônio religioso e familiar, assim como acontece com a Casa de Olga Régis de Alaketu.
     Com a morte de Maria da Glória em 1920, Mãe Menininha assume o trono no ano de 1922, sendo o período de maior reconhecimento para o candomblé do Gantois. A referida Yalorixá tornou-se então a mais influente de sua época, sendo cantada e referenciada na história do Candomblé. No dia 13 de agosto de 1986 Mãe Menininha faleceu de causas naturais aos 92 anos de idade deixando o legado para sua filha mais velha Cleusa Millet, que por sua vez veio a falecer no ano de 1997. Atualmente estando na sexta sucessão a sua filha mais nova Carmem Oliveira da Silva. 
    Em 1992, o Gantois abre suas portas para a comunidade de uma forma diferente, agora não apenas aos fiéis, mas também aos que desejam conhecer um pouco mais da memória religiosa do candomblé, através do acervo de mais de 500 peças que perpetua a imagem da grande Mãe Menininha. Várias atividades socioculturais marcam o espaço do Ilê Iyá Axé Omim Iyamassê através da Associação de São Jorge Ebé Oxossi criada em 1949. 
    A partir dessa iniciativa o Memorial, que ocupa o espaço religioso, encontra-se integrado à comunidade religiosa e todo o seu entorno, proporcionando um olhar diferenciado a todos que visitam. A ressignificação e a abertura do espaço de memória reforçam o aspecto múltiplo que é uma casa de candomblé, pois além dos cuidados para com os Orixás, importa também o cuidado com o humano por se tratar justamente de uma extensão do sagrado. A valorização do corpo enquanto templo que manifesta os deuses é tão importante quanto a valorização dos otás, das quartinhas, dos ilekes, por essa razão a ideia de patrimônio cultural foi repensado a partir dos terreiros. Também para o terreiro não é importante apenas os que estão dentro, mas principalmente os que estão fora. Esse aspecto é ressaltado por Miriam Rabelo enfatizando que, 

O terreiro é um espaço de encontro e convivência, espaço que se define por uma experiência de multiplicidade. No candomblé a multiplicidade é bastante valorizada. Mas não é simplesmente exibida, admirada e celebrada nas festas, não é matéria para simples apreciação. Precisa ser caminhada e desenvolvida. (...) O terreiro é tanto lugar de forte exibição quanto um espaço de ocultamento, de portas e recipientes fechados, de visibilidade reduzida ou obstruída. O visitante que chega não demora a perceber uma distinção importante entre lugares de acesso restrito ou controlado, fechados ou entreabertos – embora estes últimos lhe sejam vetados, sua existência não lhe passa despercebida. (RABELO. 2014, p. 279-282)

     Talvez esse aspecto múltiplo dentro das comunidades de terreiro, no qual se encaixa o memorial construído no Gantois, seja em decorrência também de como os terreiros caminharam historicamente, em muitas situações tendo que se esconder para poder se perpetuar. Entre os lugares entreabertos e até mesmo fechado está a sobrevivência das tradições afro-religiosas, essa também é uma forma encontrada pelas comunidades para se manter o “segredo”, tão importante, que poderá ser apenas revelado e partilhado com aqueles que fazem parte do ethos sagrado. É por essa razão que tudo é muito mais visto do que falado. A observação é resultante de um processo também de sobrevivência das religiões de presença africana. 
    Foi dessa forma que conseguiu se sustentar em meio as diversidades de um ambiente culturalmente hostil. Se no século XIX a ideia era ocultar o espaço religioso para se preservar, no final do século XX a ideia se inverteu e o Gantois teve que revelar os seus bens culturais. Assim no início do século XXI o Ilê Iyá Axé Iyamassê foi reconhecido como patrimônio cultural do Brasil, sendo tombado no ano de 2005.
        Estando entre as casas de candomblés tradicionais da Bahia, os terreiros tombados, destacam-se em sua maioria, pela resistência e pela tradição centenária de culto aos Orixás. São espaços responsáveis por manter um arquivo vivo das tradições religiosas do povo Nagô. Evidentemente que o tombamento não faz as outras casas de candomblés menos importantes por não ter o reconhecimento nacional, algumas inclusive possuem proteção e tombamento estadual, como é o caso do Terreiro Filhos de Obá, situado na cidade de Laranjeiras – Sergipe, e que está em fase de análise do pedido, afim de ser reconhecida nacionalmente, assim como outras. 
    No século XXI as casas de candomblé chegam com espaços fortalecidos e ressignificados pelo processo de empoderamento adquirido pelas comunidades afro-religiosas. De sítios limitados a templos abertos ao povo, os terreiros hoje se constituem como fronteiras de afirmações identitárias através dos seus bens culturais que refletem suas tradições. 

  CULTURA DE TERREIRO: A DIMENSÃO RELIGIOSA E CULTURAL DO CANDOMBLÉ

    Como já dissemos, o candomblé passou por um período de perseguição e coerção devido a sua demonização pela cultura cristã, tendo que se esconder para poder sobreviver e até mesmo camuflar suas crenças. Não vamos afirmar que o sincretismo faz parte apenas desse processo de camuflagem dos valores religiosos da cultura Nagô, uma vez que entendemos o sincretismo como um fator inevitável, uma resultante do encontro de culturas distintas, então logo, não podemos fazer a colocação que o sincretismo foi apenas uma forma de sobrevivência. Preferimos ficar então com a declaração de Nina Rodrigues quando fala da ilusão da catequese. Ou seja, não conseguiram suplantar a cultura religiosa dos africanos.
     Mas, mesmo não suplantando, os danos foram irreparáveis e rendeu historicamente um olhar etnocêntrico que passou a demonizar o que lhe era desconhecido. Foi por essa razão que os terreiros tiveram que desconstruir para construir novos sentidos a fim de serem enxergados de fato como legitimadores e também responsáveis por contribuírem com a formação da identidade do povo brasileiro. 
    É por isso que não colocamos o processo de patrimonialização dos terreiros de candomblé, apenas como uma boa vontade dos que são responsáveis por gerir os órgãos estatais de reconhecimento e preservação dos bens culturais. Até se chegar ao tombamento das casas tradicionais de candomblé, é preciso se reconhecer o processo e os caminhos trilhados pelos terreiros, bem como suas estratégias no campo cultural que influenciou e influencia diretamente o fenômeno religioso. 
    Nesse sentido não podemos colocar os terreiros de candomblé como espaços que foram beneficiados pela cultura acadêmica, letrada ou até mesmo favorecidos pelas figuras políticas no processo de conquista e reconhecimento da sua importância na composição do patrimônio cultural brasileiro. É preciso salientar que os terreiros são espaços múltiplos e principalmente de cultura e educação, um espaço que é responsável também por formar “cabeças”, orientando no ensino informal ou até mesmo formal, como foi o caso do Ilê Axé Opô Afonjá, que inaugurou a Escola Municipal Eugenia Ana dos Santos dentro do terreiro e se tornou uma referência na cidade de Salvador. 
    Então quando falamos anteriormente que o processo de reconhecimento e de ressignificação é de dentro para fora, devem ser levados em consideração os indivíduos que passam pelo terreiro de candomblé, se não pela condição de sujeito religioso, mas pelo respaldo que encontra nesse espaço, enquanto um lugar também de lazer que serve a comunidade no qual está inserido, e pela função social. Um exemplo da importância do terreiro de candomblé numa comunidade pode ser sentido nessa fala,

 “Eu sou criado em terreiro. Médico de pobre é pai de santo, em último caso você ia ao médico. Hoje você vai ao psicólogo. Psicólogo de pobre era o cinto, o chinelo e uma boa macumba para tirar o (risos)...não tinha isso não. Quando você tem mais poder de grana, a religião fica um pouco de lado, quanto mais rico, mais descrente. Me desculpe, mas eu vejo assim” (5) 

    No comentário descrito, podemos perceber o papel que ocupa o espaço religioso no seu meio social, orientando, não comportando apenas um lugar de experiências religiosas. O líder religioso representa não só o mentor espiritual, mas também aquele que zela pelo bem estar individual e coletivo dos que se agregam. Foi pela sua influência que os terreiros de Candomblé passaram a atuar no fortalecimento e no empoderamento da identidade do negro, formando não apenas religiosos, mas também multiplicadores da cultura apreendida no espaço sagrado: a linguagem ritual, as danças, as músicas, a culinária, as vestimentas, o comportamento, enfim uma série de elementos próprios e características que no conjunto definem a identidade afro-religiosa e extrapolava o espaço físico. 
    Foi a partir da disseminação dessa cultura de terreiro que as religiões de presença africana, mais precisamente o Candomblé, passou a ser visto com outros olhos, ganhando uma dimensão cultural e estética de valorização. Foi num período que antecedia a década de 1980, período de tombamento do Ilê Axé Iyá Nassô Oká, que os terreiros já vinham se organizando e dando corpo a uma reafricanização. Quanto a essa fase o museólogo Raul Lody esclarece que, 

Na década de 70 surge com eficácia semântica e simbólica o rótulo afro para designar patrimônio africano no Brasil e, especialmente, identificar nas manifestações consagradamente afro-brasileiras um certo purismo africano. Germinalmente, um viço revivalista/reafricanizador vai tomando corpo nos movimentos políticos de grupos ativamente dispostos a retomar conceitos, rever conceitos e transformar socialmente visões cristalizadas sobre o negro no Brasil (LODY, 2006.p.12) 

    É a partir dessa reformulação e do repensar da cultura afro-brasileira, dos seus bens que começa a surgir o movimento de afirmação da identidade do negro que tinha nos terreiros o seu esteio, sendo também sua mola propulsora. E não se tinha solo mais fértil, que o da Bahia, para crescer esse movimento. Foi através da música que a cultura de terreiro passou a ganhar dimensões maiores divulgando e ressignificando o candomblé enquanto religião. Dorival Caymmi (1914-2008) é um dos grandes nomes da música brasileira que destaca aspectos da cultura negra em suas composições. 
    Filho de um descendente de italianos por parte de pai e descendentes de africanos por parte da mãe, Caymmi compôs clássicos como: O que é que a baiana tem?; Dois de fevereiro; Rainha do Mar; Suíte de pescador; Canto de Nanã e tantas outras composições que narram o cotidiano dos terreiros de Candomblé. 
    Dorival Caymmi conhecia de forma íntima o ambiente religioso, o universo da cultura Jeje-Nagô, não era apenas um curioso ou simpatizante. O cantor fazia questão de declarar sua fé nos Orixás. Como afirmou em entrevista “Caymmi por ele mesmo: Lendas e crenças de um Obá de Xangô”, concedida a Rádio Cultura Brasil: 

O que entra aí é uma influência que vem desde a infância, quando eu me entendi por gente (...) eu me vi cercado pelas minhas origens(...). Aquelas mulheres de saia com cheiro de quem masca raiz de dandá, fumo de rolo, um cheiro de patchouli naquela roupa de baixo, branca, bem lavada (...) aquele cheiro está impregnado da minha infância, na minha vida. Então vem sempre ligado a história do Candomblé. Eu por decisão resolvi ser filho de santo e pedir os jogos de Mãe Menininha. (...) Eu resolvi que ia deitar para fazer o santo. Me deitei e fui eleito como filho de quatro Orixás: Xangô, Oxalá, Yemanjá e Oxun (6)... 

    Tendo sua primeira iniciação feita por Mãe Menininha do Gantois, Caymmi estreitou relações com a Iyalorixá, por quem nutria respeito e admiração. Mesmo sendo iniciado no Gantois, os caminhos tomados pelo cantor o levaram para o Ilê Axé Opô Afonjá, sendo iniciado pela segunda vez por Mãe Ondina, a quarta Iyalorixá a assumir o terreiro em 1969. 
    Mais do que cantar, Caymmi fazia parte de um seleto grupo de artistas, entre eles Jorge Amado e Carybé, “crias de terreiro”, filhos de santo, que não estavam interessados apenas em apresentar as riquezas presentes na cultura afro-brasileira, mas principalmente em reafirmar valores religiosos e contribuir assim no processo de desconstrução e construção de uma nova identidade para o Candomblé.
     Sendo filho de Santo do Terreiro Opô Afonjá, Dorival Caymmi conhecido pelo título honorífico de Onikoyi, se confirmou como um dos Obás de Xangô (7), cargo de extrema responsabilidade dentro do universo sagrado fundado por Mãe Aninha, primeira Iyalorixá do terreiro. Na composição Caymmi declara sua fé ao Orixá Xangô e mostra sua perene relação com candomblé e a extensão a relação familiar. 
    Em suas cantigas não é apresentada apenas a sua relação individual com o sagrado, mas principalmente a relação que se dá com o coletivo. Entre as tantas dezenas de músicas o cantor e religioso apresenta não só as crenças e os mitos, como também a sua culinária. A forma das composições e a riqueza de detalhes com que o cantor descreve os bens culturais produzidos pelas comunidades de terreiro e os seus modos de fazer estabelece uma relação de intimidade com o universo da cultura dos terreiros jeje-nagô. Um exemplo disso são as receitas servidas aos deuses que se tornaram tão comuns e conhecidas da culinária popular, entre elas Acaçá, A preta do acarajé e Vatapá. 
    Sendo um dos elementos mais importantes dentro do candomblé, a culinária foi um dos principais atributos utilizados de forma coerente para se divulgar elementos da cultura africana e religiosa que por muito tempo foi rechaçada. Caymmi em suas canções não tratava apenas do dendê e da pimenta, tratava também de conflitos presentes na cultura brasileira, que por muito tempo foram silenciados. A exortação ao Vatapá é quase uma Ode a identidade, pois é a nêga baiana quem faz a comida e principalmente é ela que conhece as iguarias e domina a arte de encantar através da comida. É ela quem sabe mexer. A utilização das palavras e o jogo que Caymmi emprega em seus sentidos também são dúbios, além do “mexer”, sentido de manusear, ele emprega também o sentido da expressão corporal, do gingado, do samba. Essa não é uma relação despretensiosa e os ingredientes se unem para dizer qual sua origem. Pensando nas relações entre o fazer, o comer e seus ingredientes, quando se trata das tradicionais comidas de terreiro, Raul Lody esclarece que: 

O dendê é, sem dúvida, umas das mais imediatas e eficazes marcas da África na mesa afro-brasileira. Funciona como uma espécie de síntese de todos os sabores africanos aqui preservados, e relembrados nos terreiros e também na ampla e diversa culinária, nas casas, nas feiras, nos mercados, marcando ciclos festivos, entre outros eventos sociais. Se uma África geral é assumida no dendê, então comer dendê é comer um pouco de África, trazendo-a assim, para a intimidade de um prato, de um ritual, de um gosto condicionado às civilizações e as histórias dos povos africanos. Reforçam-se laços e nutrem-se relações simbólicas a partir das gastronômicas (LODY, 1998. p.26-27). 

    Na culinária, expressa nas cantigas de Caymmi, está presente a relação simbólica que Lody destaca no trecho acima citado, são esses nuances que são revelados e divulgados aos que compartilham dessa iguaria. O cantor faz com bastante rima e poesia uma ligação com o universo simbólico da África presente no Candomblé. 
    Ao longo de sua carreira tornou-se crescente o destaque dado não apenas aos bens culturais, mas também os que produzem, os líderes religiosos. Um exemplo disso foi a homenagem feita a Mãe Menininha do Gantois, por quem nutria um profundo respeito, apresentando a muitos os atributos de uma das Iyalorixás mais importantes da Bahia, levando a todo o Brasil. A “Oração de Mãe Menininha do Gantois” vai de encontro ao papel de bruxa, feiticeira, mãe do diabo e tantos outros termos pejorativos que foram empregados para definir “mãe de santo”. Em poucos versos Maria Escolástica da Conceição Nazaré é definida: 

Ai! Minha mãe 
Minha mãe Menininha
 Ai! Minha mãe
 Menininha do Gantois 
A estrela mais linda, hein
 Tá no gantois 
E o sol mais brilhante, hein 
Tá no gantois
 A beleza do mundo, hein 
Tá no gantois
 E a mão da doçura, hein
 Tá no gantois ... 

    A música feita para celebrar os 50 anos de Mãe Menininha, juntamente com o disco do cantor, deu grande repercussão não apenas no país. “O sol mais brilhante” foi realmente o do Gantois, a mãe zelosa, acolhedora e amável está presente na letra e consequentemente também é uma alusão a toda uma casta de Iyalorixás que fizeram da Bahia “A cidade das mulheres” como disse Ruth Landes “Eram as mulheres que canalizavam a vida das gentes na Bahia” (2002, p.21), já que a sacerdotisa era bisneta, sobrinha e filha de também sacerdotisas que contribuíram no fortalecimento do culto. A representação da grande mãe que conseguia reunir dos homens mais simples aos mais poderosos do Brasil com naturalidade e sabedoria, assim era vista Mãe Menininha por muitos. A poesia de Caymmi na década de 1970 do século XX contribuiu registrar e divulgar ainda mais a importância da Iyalorixá como símbolo religioso que unia toda a Bahia mas os diversos credos. 
    Na diáspora religiosa, Mãe Menininha conseguiu ser uma intercessão entre os conflitos existentes na Bahia, num momento crítico de perseguição ao Candomblé. No período em que qualquer ruído de tambor era proibido, a Iyalorixá teve que agir com muita diplomacia para sustentar sua Casa de Candomblé e também acabou por estender uma influência aos demais que necessitassem de sua proteção. 

  COM O AFOXÉ O CANDOMBLÉ VAI A RUA 

 Ainda tendo a música como um carro chefe responsável por divulgar a cultura afro-religiosa e disseminar os costumes e as tradições do Candomblé, cantando os encantos de Mãe Menininha, tivemos uma canção que se tornou quase que um hino da Bahia, “É D’Oxun”, composição de Gerônimo e Vevé Calazans vindo coroar a Iyalorixá como “Mãe da Bahia”. E não por acaso ela carregava em seu arquétipo os atributos da grande Iyabá das aguas doces, Oxun, Deusa responsável pela fertilização, a mulher vaidosa que acalma e acalenta os seus filhos. A música é carregada de uma simbologia que traduz o universo religioso candomblecista, no qual a mulher, historicamente, deteve o poder de liderar e educar dentro dos terreiros. Assim canta-se: 

Nessa Cidade Todo Mundo É d'oxum
 Homem, Menino, Menina, Mulher 
Toda Essa Gente Irradia Magia 
Presente Na Água Doce 
Presente n'água Salgada 
E Toda Cidade Brilha 
Seja Tenente Ou Filho De Pescador 
Ou Importante Desembargador 
Se Der Presente É Tudo Uma Coisa Só 
A Força Que Mora n'água 
Não Faz Distinção De Cor 
E Toda A Cidade É d'oxum 
É d'oxum, É d'oxum, É d'oxum,
 Eu Vou Navegar, Eu Vou Navegar 
Nas Ondas Do Mar, Eu Vou Navegar 
É d'oxum, É d'oxum 


    Foi em 1985, lançada um ano antes do falecimento de Mãe Menininha, que a canção foi trilha sonora da minissérie Tenda dos Milagres (adaptação do romance de Jorge Amado) e começou a embalar os afoxés da Bahia. 
    Tratando até o presente momento das estratégias de afirmação e legitimação do Candomblé enquanto religião, e principalmente, no que tange a valorização dos bens culturais produzidos pelas comunidades de terreiros entre saberes e fazeres, o afoxé é um dos elementos que mais contribuiu no processo de construção de novos sentidos. 
    A necessidade de desconstruir o olhar do colonizador que marcou a cultura afro-religiosa como demoníaca, algo que deveria ser combatido, levou o candomblé para a rua ganhando assim novas dimensões. Foi por essa razão que já no século XIX começou-se de forma ainda tímida a organizar os blocos formados por homens negros no carnaval. Mas foi nas décadas de 1970 e 1980 que os afoxés viveram um período de maior ênfase, se popularizando e se disseminando. 

Quase todos os membros dos afoxés se vinculam ao culto. Seus músicos são alabês, suas danças reproduzem a dos orixás, seus dirigentes são babalorixás (...), e o ritual do cortejo obedece à disciplina da tradição religiosa. Os afoxés trouxeram para o espaço do carnaval o repertório musical e a estética dos candomblés (GUERREIRO, 2000, p.71) 

    Aproveitando os embalos do carnaval, os religiosos passaram a aproveitar o momento para cantar, rezar e se divertir. Não tão distante da tradição religiosa do Candomblé, aonde muitas vezes o sagrado e o profano são divididos por linhas tênues, os afoxés são a junção do cantar e rezar de um modo mais livre. Nesse sentido não fica muito distante dos rituais que acontecem nos terreiros, sendo também denominado por alguns como Candomblé de rua. 
Partindo do seu sentido etimológico o termo afoxé tem algumas definições, porem iremos destacar que:

 O termo afoxé provem da língua Iorubá: afose ou de influência sudanesa sobre o banto sobre o banto afohsheih – recurso mágico que concede ao indivíduo o poder da palavra, o poder de ordenar e não ser desobedecido. Estruturalmente divide-se em três partes, a – prefixo nominal; fo que significa pronunciar e – xe que significa realizar-se. Conforme o estudioso baiano Antônio Risério, afoxé quer dizer o enunciado que faz acontecer, uma espécie de palavra encantada, uma fórmula mágica (NDAGANO, 2010, p.14) 

    A partir da citação de Ndagano, podemos perceber que no sentido da palavra, independentemente de sua variação ou influencia estará implícito o sentido de “poder”, estando associado a sentido de axé, sendo seu significado “poder ou palavra que faz acontecer”. 
    Foi com essa intenção “de fazer acontecer” que os homens ligados aos terreiros de Candomblé começaram a ir as ruas afim não de só garantir seu espaço na festa profana, como também forma estratégica de mostrar o poder da cultura afro-religiosa. 
    No afoxé os instrumentos tocados nas festas religiosas também ganham destaque, atabaques, agogôs e xequerês ganham notoriedade, sendo responsáveis também por embalar ritmos como Ijexá, um dos mais presentes nos cortejos. 
    As roupas também fazem parte do contexto festivo. É possível perceber as cores que fazem parte das indumentárias dos Orixás, muitas vezes uma reprodução dos mesmos, sendo presentes na festa. Esse é um conjunto que faz dos afoxés manifestações peculiares do universo cultural e religioso do Candomblé. Além dos elementos musicais e indumentárias, e a performance, tem também rituais típicos como o da oferta do padê. 
    Sendo um ritual que tem como fundamento saudar Exú, a fim de pedir permissão a esse Orixá, tendo em vista que na teogônia nagô ele é o senhor dos caminhos, o ritual do padê também parte do princípio de que ele precisa ser alimentado para garantir a paz e um bom andamento da festividade. Essa é uma preocupação inicial de todos os afoxés. Já em meados da década de trinta, mais especificamente em 1935, o Ilê Axé Opô Afonjá criou o Afoxé Pai Burokô, sob a organização do mestre Didi. 

Burokô originou-se de um tronco de um araçazeiro que tinha a aparência de um homem, encontrado por Didi, Deoscóredes M. dos Santos, atualmente Alapini, Supremo Sacerdote do culto dos egunguns, ancenstrais masculinos, naquele tempo um menino que brincava de picula na roça de São Gonçalo (...). Aquele toco foi venerado pelos meninos que, depois de ouvirem Mãe Aninha, lhe deram o nome de Burokô, tornando-se patrono da troça carnavalesca. Em 1942, sob a direção dos fundadores (...) o Burokô atingia a maioridade. No sábado fizeram as obrigações, que incluía oferenda ao Orixá Exú, senhor dos caminhos, a fim de que ele protegesse a brincadeira, livrando-a de todo mal (LUZ, 2002, p.110-11). 

    A história e a trajetória dos afoxés na Bahia é longa e remete a tempos de luta pela sustentação da cultura africana e religiosa no Brasil e passa pelas terreiros de Candomblé, que sempre estiveram comprometidos em sua organização, a exemplo do Ilê Axé Opô Afonjá. É uma militância que não vem de intelectuais acadêmicos e nem do Estado, antes de tudo é resultado de uma frente política liderada pelas comunidades de terreiro. 
    Entre os muitos afoxés presentes na cidade de Salvador, um dos mais conhecidos e populares hoje, é o Afoxé dos Filhos de Gandhy, que chama atenção pelas peculiaridades. Tendo como finalidade exaltar a paz, o bloco faz uma fusão entre elementos da cultura indiana, e a cultura afro-religiosa. Se por um lado tem a homenagem a figura do ativista Mahatma Gandhi, do outro lado tem a figura de Oxalá, Deus do branco, ambos com o mesmo objetivo, buscar a paz e o equilíbrio. É justamente encontrando semelhanças nessas duas figuras que o afoxé traz uma indumentária em forma de túnica na cor branca, lembrando Gandhi, e o turbante e os colares nas cores azuis e brancos, presentes como elementos da cultura Nagô. 
    Antes de sua saída do Largo do Pelourinho, não diferindo dos outros afoxés, é feito o ritual de padê, pelos muitos homens que são adeptos do candomblé e ganham as ruas embalados pelo som do Ijexá. As mulheres ficam a margem do cortejo a espera de um colar, uma fruta ou até mesmo um banho de alfazema. 
    Mesmo trazendo elementos da cultura indiana e que estão ligados à figura do lendário Mahatma Gandhy, em sua essência, existe a predominância dos ritmos e até mesmo rituais que dão visibilidade aos bens culturais que os ligam ao universo do candomblé. A junção ainda dos distintos elementos possibilita divulgar o respeito à tolerância religiosa, sendo um fator de grande importância para as comunidades de terreiros. 
    Integrando os blocos de carnaval, e acompanhando a difusão dos afoxés na década de 1970 e 1980, estavam alguns gêneros musicais que contribuíram ainda mais na divulgação da cultura religiosa do Candomblé, sendo eles o samba-reggae e o axé music. 
    O samba-reggae também foi um movimento que saiu de dentro dos terreiros. A mistura do samba aliado ao reggae jamaicano, criado pelo músico Neguinho do Samba (1955-2009), fundador e criador do grupo Olodum, fez parte de um movimento afro-religioso que usava a música como componente principal para diminuir os conflitos gerados no campo sociocultural e religioso que historicamente desfavoreceu o povo negro. Na obra de Almerinda Guerreiro, a trama dos tambores: a música afro-pop de Salvador, Neguinho revela: “Minha escola foi o candomblé, meus irmãos são ogãs, meu pai também, ele tocava bongô. A gente teve uma formação musical diferente, antiga, então eu acho que é uma coisa de universo mesmo, a gente é o que merece ser” (GUERREIRO, 2000, p.61). 
    Entre as bandas de samba-reggae mais conhecidas está a banda Reflexus, oriunda do bairro Cabula, onde encontra-se o Ilê Axé Opô Afonjá, foi uma das primeiras a fazer sucesso fora da Bahia e a ganhar visibilidade no cenário da música nacional. As letras do seu reportório colocavam em destaque não apenas a cultura negra afro-brasileira, mas também a africana, participando até mesmo de movimentos políticos. Foi dessa forma que a Banda cantou pela libertação de Nelson Mandela e se posicionou contra o movimento do Apartheid (8). Contudo, mais forte que a exaltação a cultura afro-brasileira foi o destaque dado ao universo religioso do povo Nagô. 
    As músicas da Banda Reflexus sempre vieram com letras carregadas de elementos simbólicos e representativos do candomblé que contribuíram na disseminação da religiosidade dos povos de terreiro e no seu enfrentamento ao racismo religioso. Foi assim que conseguiu influenciar e chamar atenção para a problemática enfrentada pelo negro candomblecista. 
    Entre os vários artistas das comunidades periféricas de Salvador, de onde surgiram os afoxés, o samba-reggae e os blocos afros, como o Ilê Ayê, Olodum, Malê Debalê, Badauê, está a presença e a ligação com a tradição afro-religiosa. Um aspecto que reforça ainda mais uma das principais características dos terreiros, que é justamente a de educar, obviamente que uma educação informal voltada para a reafirmação étnico-racial. 
    Como podemos constatar, o tombamento do Ilê Axé Iyá Nassô Oká, não é um fato que acontece isoladamente pela boa vontade do Estado, ou de uma elite branca intelectualizada, em reconhecer um terreiro de Candomblé como espaço que deva ser patrimonializado. Antes de tudo é resultado de um movimento histórico encabeçado pelas próprias comunidades de terreiro, que acabam colocando em foco a importância das religiões de presença africana na composição da identidade e do patrimônio cultural brasileiro. 

  CONSIDERAÇÕES FINAIS 

 Partindo da interdisciplinaridade que a Ciências da Religião nos permite ter quando vamos tratar do estudo e da pesquisa de campo, os bens e o patrimônio cultural é só mais uma possibilidade que nos ajuda a compreender o fenômeno religioso. 
    A necessidade de se falar e esclarecer, no contexto desse artigo, acerca do conceito de patrimônio cultural e patrimonialização deve-se ao fato do desconhecimento e do entendimento que esse conceito ganha quando passamos a tratar de bens culturais produzidos pelas comunidades de terreiro, que ganham uma dimensão de patrimônio sagrado. 
    O patrimônio cultural, quando nos referimos aos bens constituídos pelo candomblé, ganha uma nova dimensão sendo referenciado como patrimônio sagrado. Essa apropriação parte justamente das possibilidades que o conceito acaba nos dando por ser polissêmico. 
    Passando aqui a tratar do contexto inicial de como historicamente os bens produzidos pelas comunidades afro-religiosa eram vistos, como bens uteis e dignos apenas de estarem em museus para fins de estudo etnográfico e que faziam referência sempre a partir do olhar etnocêntrico, no qual o patrimônio sagrado constituído pelo Candomblé foi colocado como demoníaco. Partimos do princípio da necessidade que as comunidades tiveram de ressignificar os seus bens para serem respeitados e tidos como elementos de importância e influencia dentro da sociedade. 
    Assim partindo dessa necessidade, de ressignificar, o candomblé enquanto uma religião organizada passa a elaborar estratégias que visavam a valorização e a legitimação da cultura afro-religiosa associadas ao empoderamento de seus fiéis criando um sentimento de pertencimento.
     Assim abordamos dentro do referido trabalho, que até se chegar ao tombamento do primeiro terreiro de candomblé no Brasil, a Casa Branca do Engenho Velho, houve um movimento político e religioso organizado pelos terreiros de candomblé para garantir o seu lugar dentro da estrutura social em que estavam inseridas as outras religiões. 
    Nesse contexto torna-se importante falar dos terreiros de candomblé e da sua importância enquanto espaços legitimadores de um poder simbólico capaz de mobilizar e de estruturar sem utilizar a força ou violência física. 
    Aqui nós tratamos a patrimonialização, como um processo que se inicia antes mesmo dos órgãos oficiais, que tem o poder de instituir o bem como patrimônio cultural nacional. Esse processo foi do qual se apropriaram os terreiros de candomblé, levando a cultura de terreiro para toda a sociedade e imprimindo uma importância, seja nas letras das músicas compostas pelos nomes que se fizeram conhecer, seja pelos blocos de Afoxé ou até mesmo movimentos musicais encabeçados pelos afro-religiosos. 

  NOTAS: 

 Este texto foi originalmente publicado: SANTOS, Cláudio de Jesus. Os terreiros de candomblé como patrimônio cultural e sua nova representação no campo afro-brasileiro. In:___Religião e cultura: hibridismos e efeitos de fronteira. BONFIM, Luiz Américo Silva (Org.) – Curitiba: CRV, 2020. 

*Museólogo do Museu Afrocultural de Sergipe e Mestre em Ciências da Religião pela Universidade Federal de Sergipe. E-mail:claudiomuseologo@yahoo.com.br 
** Professor do Departamento de Ciências Sociais, UFS e Professor do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião, da mesma instituição. E-mail: bricesogbo@hotmail.com 

1.Quanto a legislação que define e regulamenta ver o Decreto nº 3.551, de 4 de agosto de 2000 que institui o registro de bens culturais de natureza imaterial que constituem Patrimônio Cultural Brasileiro, cria o Programa Nacional do Patrimônio Imaterial. 

2. Terreiro fundado por Mãe Aninha de Afonjá no ano de 1910. Localizado na Rua Direita de São Gonçalo do Retiro, 557, Bairro do Cabula, na capital Salvador, Bahia 

3. Após a morte de Mãe Aninha foi a quarta Iyalorixá na linha de sucessão a liderar o Opô Afonjá (1976-2018). A referida Iyalórixa faleceu no ano de 2018 em meio ao processo de desenvolvimento dessa pesquisa. 

4. Segundo Pierre Bourdieu é um poder de construção da realidade que tende a estabelecer uma ordem gnosiológica: o sentido imediato do mundo (e, em particular, do mundo social) (BOURDIEU, 2007, p. 09). 

5. Entrevista do cantor Zeca Pagodinho concedida ao Fantástico no dia 07/11/2011. Acesso ao link: https://www.youtube.com/watch?v=NHkc-rUIsJk 

6. WEBER, Eduardo. Lendas e crenças de Um Obá de Xangô. Site Rádio Cultura Brasil. Disponível em: < http://culturabrasil.cmais.com.br/programas/caymmi-por-elemesmo/arquivo/lendas-e-crencas-de-um-oba-de-xango>. Acesso em 28 fev. 2019 

7. Cargo de extrema importância dentro do Ilê Axé Opô Afonjá, fundado por Mãe Aninha. 

8. Movimento de segregação racial instaurado oficialmente no final dos anos quarenta, mais especificamente em 1948, pelo Partido Nacional. Foi o período em que a África do Sul passou a sofrer grandes conflitos entre negros e brancos. No ano de 1980 algumas leis começaram a ser revogadas devido ao posicionamento da ONU e pela luta da população oprimida.

 REFERÊNCIAS:

BOURDIEU, Pierre. O Poder Simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand, 2007. 
GUERREIRO, Goli. A trama dos tambores: a música afro-pop de Salvador, 2000 
HOBSBAWM, Eric; RANGER, T (Orgs). A invenção das tradições. Paz e Terra, 2002. 
NOGUEIRA, Antônio Gilberto Ramos. Por um Inventário dos Sentidos: Mário e Andrade e a concepção de patrimônio e inventário. São Paulo. Hucitec: Fapesp, 2005. 
LODY, Raul. Pencas de balangandãs da Bahia: um estudo etnográfico das jóias-amuletos. Rio de Janeiro: Instituto Nacional do Folclore, 1998 
NDAGANO, Biringanine. Penser ler carnaval: variations, discours et représentations. 2010 
SANTOS, Edmar Ferreira. O poder dos candomblés: perseguição e resistência no Recôncavo da Bahia. Salvador: EDUFBA, 2009. 
VELHO, Gilberto. Patrimônio, Negociação e Conflito. In: Antropologia e Patrimônio Cultural: Diálogos e Desafios Contemporâneos. Org. FILHO, Manuel; BELTRÃO, Jane; ECKERT, Cornélia. – Blumenau: Nova Letra, 2007. 
RABELO, Miriam C. M. Enredos, feituras e modos de cuidado: dimensões da vida e da convivência no candomblé. Salvador: EDUFBA, 2014.296 p. 
RODRIGUES, Raimundo Nina. O animismo fetichista dos negros baianos; apresentação e notas de Yvonne Maggie, Peter Fry. Ed. Fac-símile. Rio de Janeiro: Fundação Biblioteca Nacional/ Editora UFRJ, 2006 [1896 e 1897].

terça-feira, 24 de abril de 2018

Museologia e Ciências da Religião: uma relação entre o patrimônio e o fenômeno religioso

Após um bom tempo sem publicar na página, devido a existência de problemas com login (recuperei a senha rsrs), a página “ensaios museológicos”, está voltando a sua atividade. Agora irei ampliar um pouco mais o quadro de discussões, não ficando apenas relacionado ao universo museológico, mas partindo também para o campo da Ciências da Religião. Na verdade uniremos o útil ao agradável.
Partindo do princípio que o foco da página é a discussão em torno das questões da Museologia e do patrimônio cultural, buscaremos relacioná-los ao universo das religiões de matriz africana. Dessa forma, iremos estabelecer conexões, e entender de que forma a museologia vem contribuindo no desenvolvimento de projetos relacionados a preservação de bens culturais produzidos pelas comunidades de terreiro, e de que forma influencia no universo afro-religioso.
Enquanto pesquisador, defensor e militante não apenas da “museologia social”, mas também do campo religioso afro-brasileiro, acredito que os terreiros de candomblé são espaços favoráveis para o seu estudo e desenvolvimento, pois possibilita na prática a construção e “eleição” dos bens musealizados pelas próprias comunidades.

segunda-feira, 20 de maio de 2013

MEMÓRIAS EM CARTAS: PROPOSTA DE VENDA DO ACERVO DO MUSEU SERGIPANO DE ARTE E TRADIÇÃO NA DÉCADA DE 1980 DO SÉCULO XX






No ano em que a Museologia discute a importância da criatividade na gestão dos museus para a mudança social, apresento uma correspondência datada do dia 13 de novembro de 1987. Nela José Augusto Garcez relata a sua batalha para a manutenção do museu e coloca a venda o prédio e o acervo do Museu Sergipano de Arte e Tradição e dos outros órgãos de cultura que contribuíram para movimentar o cenário cultural sergipano por várias décadas no século XX.

Através da carta podemos perceber a importância do seu Museu enquanto um órgão que contribuiu com resistência ao indiferentismo do Estado para coletar, preservar, pesquisar e comunicar uma parte significativa do patrimônio cultural sergipano, hoje presente em diversos museus do Estado. A seguir transcrevemos a carta:


Aracaju, 13 de novembro de 1987.
Exmo. Sr.
Arnaldo Rolemberg Garcez
MD.Prefeito Municipal
ITAPORANGA D AJUDA


Ao longo de minha vida, toda ela dedicada ao estudo, pesquisa e ainda interpretação dos fatos culturais de Sergipe, tive a oportunidade de viajar pelo interior de nosso estado, reunindo importantes informações e valiosos subsídios sobre o nosso processo de evolução econômica, social e cultural.

Sem nunca contar com auxílios ou subvenções do Governo quer Federal, Estadual ou Municipal, retirando dos meus salários de aposentado do Banco do Brasil S.A. , sob a égide da vocação e do idealismo, numa luta obstinada e sofrida, fundei e venho tentando conservar sem a colaboração de qualquer espécie de colaboração, os seguintes organismos :

O Museu Sergipano de Arte e Tradição;

Biblioteca Popular Tobias Barreto;

Museu de História e Ciências

Um Arquivo sobre figuras da vida do Estado.

Se agi assim, devo dizer a V. Exa., que o fiz porque não podia permanecer estático, indiferente, sitiado no marasmo provinciano, vendo se esfacelar, em razão de um pretenso progresso, expressivas contribuições do nosso passado.

Agi sem dúvida alguma, com espírito público, mesmo porque o Patrimônio Histórico e Artístico, os bens culturais tem que ser defendidos com ardor, civismo e patriotismo, porque serão centros de atração, inclusive turística, com a missão de ensinar e educar as gerações, despertando vocações, criando condições de sobrevivência e todas as áreas da cultura.

Procurei assim vencer o indiferentismo provinciano e as poucas bibliotecas, arquivos e museus vão perecendo um a um por falta de estímulos e recursos.

Isto posto, cercado de imagens vivas do passado, lembrança de tantas pesquisas e aquisições, sem mais poder levar avante todo o meu trabalho, solicito a V.Exa., estudar a possibilidade da Prefeitura Municipal de Itaporanga D’ Ajuda, para efeito de compra, de utilidade pública o prédio, o acervo do Museu, do Arquivo e da Biblioteca Popular Tobias Barreto, que mantenho nessa Cidade.

Devo confessar a Vossa Exa., que devemos integrar o espírito cívico, patriota, uma ação cultural verdadeiramente na cidade de Itaporanga D’Ajuda , bem assim em todas as comunidades , levando-se em consideração o espírito da lei ainda vigente nas cartas Magnas Nacional e Estadual.

É dever e preocupação dos órgãos oficiais apresentarem e defenderem projetos culturais, objetivando o soerguimento da memória regional que lentamente vai desaparecendo e, no caso especifico , de Itaporanga D’Ajuda , desaparecerá com o fim das atividades da aludida Biblioteca e do referido Museu , os quais já sofreram assaltos, obrigando-me a pagar, do meu próprio bolso , um vigilante para tomar conta deles.

Caso Vossa Excelência, decida acolher a minha pretensão, que considero oportuna e interessante para essa cidade, poderá a Prefeitura Municipal de Itaporanga D’Ajuda contar com o apoio do Governo do Estado, do Banco do Brasil S/A e de empresas outras, as quais poderão se beneficiar dos incentivos fiscais, previstos na legislação pertinente, conhecida da Lei de Incentivos Fiscais para a cultura, sancionada, em 1985, pelo Excelentíssimo Senhor Presidente da República José Sarney.

Almejo expressar a V.Exa. , o testemunho inequívoco de apreço e dinamismo pelo que ainda pode executar em prol do município e do Estado, na promoção dos bens culturais e dos valores sergipanos, culminando pela vitória de uma justa causa e enobrecendo nossas tradições.

José Augusto Garcez

REFERÊNCIA:
Arquivo do Memorial de Sergipe.José Augusto Garcez. Correspondência para Arnaldo Rolemberg.1987. (Caixa 03).

JOSÉ AUGUSTO GARCEZ E A SUA CONTRIBUIÇÃO PARA ACRIAÇÃO DO MUSEU HISTÓRICO DE SERGIPE

Cláudio de Jesus Santos

Texto apresentado na 11ª Semana Nacional de Museus no Museu Histórico de Sergipe na Mesa Redonda: Museus (memória + criatividade) = Mudança Social no dia 17 de maio de 2011.





Refletindo acerca do tema da 11ª Semana Nacional de Museus, “Museus (memória + criatividade) = mudança social”, não poderia deixar de ressaltar que essa temática, em forma de equação poética, sempre foi constante nos fazeres museológicos de Sergipe desde a sua origem, por mais que em alguns momentos o resultado não tenha sido tão satisfatório quanto se esperava. Que o diga José Augusto Garcez, com a sua luta constante pela institucionalização de um museu mantido pelo governo do estado, nas décadas de 1940 e 1950 do século XX.

Até então nesse período, mesmo possuindo dois museus, o Museu do Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe (1912) e o Museu Histórico Horácio Hora em Laranjeiras (1942), Sergipe permaneceu por quase quatro décadas numa espécie de “inércia museológica”, uma situação que veio ser sanada com a atitude de Garcez após fundar o Museu Sergipano de Arte e Tradição em sua casa. De acordo com Maria Lourenço é justamente nesse período, no qual surge a instituição, que “Museu pouco mais é que improviso, ação entre amigos e vôo cego quanto a sua permanência e continuidade” (1999, p.21). A autora fala justamente da falta de apoio do poder público para a criação de museus, ficando sua criação nas mãos de sujeitos preocupados com a preservação do patrimônio e da memória.

A partir das suas ações museológicas, de coleta, preservação, pesquisa e comunicação Sergipe passa a ter mais destaque no quadro da museologia nacional, acompanhando o período de efervescência do surgimento dos Museus de Arte Moderna. Como compreende Lourenço, “nem todos são chamados de Museu de Arte (...). Outros contêm em sua denominação Museu de Arte e Tradição, como os do Estado do Sergipe, sediados em Aracaju (1948) e na cidade de Itaporanga D’Ajuda” (1999, p.89). Através da citação da autora podemos perceber a importância do museu criado por Garcez para a composição do cenário museológico sergipano, na década de 40, podendo ser percebido também como um elemento de ruptura para a renovação da Museologia no Estado, que passa a ganhar um novo modelo de museu.

Apesar das dificuldades no campo museológico, importa esclarecer que o museu idealizado e gestado por Garcez conseguiu inaugurar uma fase importante da Museologia sergipana, sendo um divisor de águas, não só nos fazeres museológicos como também na formulação do seu pensamento. Isso pode ser notado através das relações que o museu, estabelecia com a “comunidade científica” enquanto um produtor ativo do conhecimento, como também com a população passando a disseminar uma equação básica “museu + criatividade = mudança social”, definida quase vinte anos depois em Santiago do Chile como Museu Integral.

Assim, mesmo, segundo Garcez, “não correspondendo a técnica exigida na perfeita função do verdadeiro Museu” a instituição recebeu vários comentários em âmbito nacional das mais diversas autoridades da área cultural, a exemplo de Drummond, Menotti Del Picchia, Gustavo Barroso, David Carneiro, Fernando de Azevedo e outros que colocam o Museu Sergipano de Arte e Tradição em uma posição de importância na composição do quadro museológico nacional, os quais manifestam votos de apoio ao seu empreendimento em prol do desenvolvimento cultural do estado de Sergipe.

É nesse contexto de grande descaso político com os museus em Sergipe, que Garcez fala para os poderes públicos, chamando atenção para as suas carências, as quais segundo ele impediam que as instituições vivessem “objetivamente a missão e função pedagógica, artística e científica” (GARCEZ, 1958, p.54).

É partindo da luta pela preservação do patrimônio cultural no Estado que José Augusto Garcez dá início a campanha pela construção do Museu Social de Sergipe, contando ainda com o apoio de outros intelectuais, a exemplo de Luis da Câmara Cascudo, que através de correspondências passa a ser um dos principais incentivadores do seu projeto, enviando cartas para autoridades políticas, a exemplo dos Governadores Arnaldo Garcez e Leandro Maynard Maciel em 1958.

A batalha para a implantação do Museu em Sergipe, na ótica de Garcez, é entendida não só pela necessidade da defesa do patrimônio sergipano, mas também pela obrigação do Estado em apoiar tal empreendimento, uma vez que dispunha de recursos necessários para manter um museu que funcionasse de “forma correta” dentro das normas técnicas da Museologia.

Mesmo tendo suas “pretensões frustradas”, como disse Garcez, por não conseguir institucionalizar o Museu Sergipano de Arte e Tradição, transformando-o no Museu Social de Sergipe, José Augusto Garcez conseguiu na prática fazer com que seu museu exercesse a função social em favor do desenvolvimento sociocultural do Estado. Garcez conseguiu impulsionar ainda a necessidade de um “organismo vivo” e a sua importância de servir a toda população para a construção de um conhecimento necessário em prol da valorização do patrimônio sergipano.

Coincidência ou não, um ano após Garcez publicar sua obra de análise crítica “Realidade e destino dos Museus”, em 1958, também uma espécie de diário de sua batalha em prol da criação de um museu para Sergipe, começa-se a ser apresentado o Museu de História e Arte Popular, em 1959.

Mas foi no ano seguinte no dia 05 de maço de 1960, ainda no Governo de Luiz Garcia, que foi inaugurado o Museu Histórico de Sergipe, estando a frente do seu projeto Junot Silveira, então secretário do Governador.
Mesmo José Augusto Garcez não estando diretamente ligado a criação do MHSE, no que tange ao seu projeto, obviamente por retaliação política, não resta dúvidas da sua contribuição para a realização da primeira ação museológica efetiva do Estado de Sergipe.





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Anos mais tarde, por ironia de mnemosine, na década de 1970, parte do acervo do Museu Sergipano de Arte e Tradição foi vendida para o Estado, passando a compor não só o rico acervo do Museu Histórico de Sergipe, como também de outros museus sergipanos. Não só isso, mais do que o acervo, Garcez deixou de legado para o MHSE a importância de somar memória e criatividade em prol da mudança social.

REFERÊNCIAS

CASCUDO, Câmara. Em Sergipe del Rey – Movimento Cultural de Sergipe, 1953.

FRAGATA, Thiago; SANTOS, Cláudio de Jesus. Cinquentenário do Museu Histórico de Sergipe: os pioneiros (II). Jornal da Cidade, Aracaju, p. 11 - 11, 04 abr. 2010.

GARCEZ, José Augusto. Realidade e Destino dos Museus. Aracaju. Livraria Regina, 1958.

LOURENÇO, Maria Cecília França. Museus Acolhem Moderno. São Paulo. Editora da Universidade Federal de Sergipe, 1999.

SANTOS, Cláudio de Jesus. Era uma casa, era um museu: José Augusto Garcez e a formação do pensamento museológico sergipano.2011. 72f. Monografia. – Núcleo de Museologia - UFS. Sergipe, 2011.

_____. José Augusto Garcez e a Museologia Social em Sergipe. CIMFORM, Aracaju, p. 2 - 2, 29 nov. 2010.

_____. José Augusto Garcez, precursor da Museologia Sergipana. Jornal da Cidade, Aracaju, p. 08-08, 01 jun. 2009.

CINQUENTENÁRIO DO MUSEU HISTÓRICO DE SERGIPE: OS PIONEIROS (II)*




Thiago Fragata**

Cláudio de Jesus Santos**


Os 50 anos do Museu Histórico de Sergipe festejado em março não olvida os antecedentes. O Museu de História e Arte Popular, como foi anunciado em agosto de 1959, por Junot Silveira, lembrava o Museu Sergipano de Arte e Tradição criado por José Augusto Garcez em 1948.(1) Neste tópico falaremos do pioneirismo deste e de outros pesquisadores que influíram direta ou indiretamente na concepção do Museu Histórico de Sergipe.

José Augusto Garcez nasceu em 1918, na Usina Escurial, em São Cristóvão. Iniciou seus estudos secundários no Colégio Tobias Barreto, concluindo no Colégio Maristas, em Salvador. Mais tarde, ainda na Bahia, iniciou o Curso de Direito, que, por motivos de saúde, não chegou a concluir. Aos 20 anos o sancristovense era colaborador em jornais de Sergipe, Rio de Janeiro e São Paulo. Imbuído do desejo de musealizar as raízes culturais de Sergipe, José Augusto Garcez fundou, em 1948, e manteve com recursos próprios, o Museu Sergipano de Arte e Tradição, o qual foi detentor de um grande acervo referente à cultura material de Sergipe, resultado de coletas feitas em suas viagens pelo interior do Estado. A partir de suas ações museológicas, Sergipe passa a se destacar no quadro da museologia nacional, acompanhando o período de efervescência do surgimento dos Museus de Arte Moderna.(2)

No Museu de Arte e Tradição o intelectual preservou, pesquisou e comunicou o patrimônio salvaguardado. Mesmo funcionando em um espaço inapropriado, o que limitava a expografia e dava um aspecto de grande reserva técnica ou depósito, a instituição cumpriu suas funções museais, conferindo-lhe destaque diante de sua funcionalidade e sendo bastante visitado.

Atuando em vários planos da Museologia, Garcez foi da prática à teoria com o seu livro Realidade e Destino dos Museus, de 1958, sendo o responsável por uma obra pioneira de análise crítica-comparativa das primeiras instituições museológicas do Estado. Diante do exposto, não havia como conceber o Museu de História e Arte Popular, em 1959, que se concretizaria no ano seguinte com o nome de Museu de Sergipe.(3)

Dois nomes influenciaram na escolha do antigo Palácio Provincial de São Cristóvão para sediar a instituição museal: José Calasans Brandão da Silva e Lauro Barreto Fontes. O primeiro nascido em Aracaju (1915), professor, folclorista e renomado historiador da História de Aracaju e da Guerra de Canudos. O papel de José Calasans como primeiro agente do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional em Sergipe foi relegado pelos pesquisadores da sua vida e obra, daí a grande dificuldade para escrever esse parágrafo. Somente numa entrevista concedida na Videoteca Aperipê Memória (TV Aperipê), em dezembro de 1993, Calasans depõe que junto com o engenheiro Lauro Barreto Fontes foi responsável “na preparação daquele museu de São Cristóvão”. Ele esclarece que parte do acervo que recolheu para o Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe foi doado para compor a instituição. Em seguida o entrevistado afirma: “foi uma sugestão, de certo ponto, minha que levou o Luís Garcia a fazer àquele Museu”.

O engenheiro Lauro Barreto Fontes era, coincidentemente, agente do Departamento do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional em Sergipe a época da inauguração do Museu de Sergipe. A partir de um apelo seu e do amigo José Calasans junto ao Governador de Sergipe Luis Garcia, em Ondina, Salvador, nos idos de fevereiro ou março de 1959, este se convenceu a abraçar a idéia.(4) Do encontro saíram Luis Garcia e seu Secretário de Governo, Junot Silveira, convencidos da importância e viabilidade do projeto sugerido pelos conterrâneos.

Naquele ano(1959), enquanto os jornais sergipanos anunciavam o futuro Museu, Maria Thetis Nunes concluía o curso de Museologia, no Museu Imperial do Rio de Janeiro, como aluna de Gustavo Dodt Barroso, considerado o “Pai da Museologia Brasileira”.(5) Embora a professora Thetis, como era conhecida, não tenha desenvolvido trabalhos na área - ela faleceu em setembro de 2009 e sequer foi pegar diploma - o jornal A Cruzada chegou a anunciá-la como diretora do Museu Histórico de Sergipe. Receber agradecimento de Junot Silveira, no dia da inauguração do Museu Histórico de Sergipe (3/5/1960), endossa sua participação na obra.

O próximo artigo será dedicado a Jenner Augusto. Focaremos sua vida, arte e o desafio de organizar o Museu Histórico de Sergipe. Até porque não há como falar do passado e presente desse museu sem considerar a determinação, a sensibilidade e o amor que o artista aracajuano tinha pela instituição.

* Artigo publicado JORNAL DA CIDADE. Aracaju, ano XXXIX, n. 11314, 4 e 5/4/2010, p. B11.

** Thiago Fragata é poeta, professor especialista em História Cultural, (UFS) sócio efetivo do Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe (IHGSE) e diretor do Museu Histórico de Sergipe (MHS). E-mail: thiagofragata@gmail.com

**Claudio de Jesus Santos é graduando em Museologia (UFS).

1 - São Cristóvão, sede do Museu de Arte Popular. Correio de Aracaju. Aracaju, ano LII. N. 6272, 29/08/1959, p. 4.

2 - LOURENÇO. Museus acolhem Moderno. Caderno EDUFS, 1999, p.89.

3 - SANTOS, Cláudio de Jesus. José Augusto Garcez, precursor da museologia sergipana. Jornal da Cidade. Aracaju, 1/6/2009, p. B6.

4 - SILVEIRA, Junot. O Museu de Sergipe. A Tarde. Salvador, 27/2/1994, p. 5.

5 - FRAGATA, Thiago. Thetis Nunes, museóloga sim! Divirta-se. Aracaju, ano 1, n. 6, nov. 2009,

segunda-feira, 14 de janeiro de 2013

DA BIBLIOTECA PROVINCIAL AO MUSEU SERGIPANO DE ARTE E TRADIÇÃO: ALGUMAS NOTAS SOBRE A FORMAÇÃO DO PENSAMENTO MUSEOLÓGICO EM SERGIPE


Cláudio de Jesus Santos

RESUMO: O presente estudo tem como objetivo tecer uma reflexão acerca da formação do pensamento museológico sergipano, entre meados do século XIX e XX, iniciando com a criação da Biblioteca Provincial em 1848, até a criação do Museu Sergipano de Arte e Tradição, em 1948. Para alcançar os objetivos propostos, foi feito uso de um recurso metodológico fundamentado na pesquisa bibliográfica e documental, desenvolvendo também a interdisciplinaridade proposta pela própria Museologia estabelecendo um diálogo com outras disciplinas que dão sustentação a discussão proposta. Através do estudo pode-se concluir que as ações a formação do pensamento museológico pode ser compreendido em três grandes momentos, estabelecidos como pontos fulcrais para se pensar a memória da Museologia constituída em Sergipe.

Palavras-chaves: Museologia, Sergipe, Pensamento Museológico e Museu.

INTRODUÇÃO

Mais recentemente, no Brasil, o fenômeno da Museologia vem sendo analisado através de trabalhos mais densos, problematizando e refletindo sobre vários questionamentos teóricos ligados a recuperação da memória museológica no Brasil. É com esse intuito, a fim de contribuir para a recuperação da memória da Museologia em Sergipe, que elaboramos o presente artigo. Fruto do Trabalho de Conclusão de Curso, apresentado em 2011/1, intitulado “Era uma casa, Era um museu: a formação do pensamento museológico social sergipano em José Augusto Garcez (1948 – 1992)” o texto trata-se de uma adaptação dos capítulos I (Antecedentes museais) e II (Entre os retratos e a mobília de família).

Para alcançarmos os objetivos propostos, foi feito uso de um recurso metodológico fundamentado na pesquisa bibliográfica e documental realizada em alguns órgãos, a exemplo do Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe, Arquivo do Memorial de Sergipe (UNIT) e no Instituto Pesquise do Professor Luiz Antônio Barreto.

Quanto a sua estrutura, para uma melhor compreensão das ideias, dividimos o texto em três partes, entre elas, 1.1 A Bibliotheca Provincial e o embrião dos primeiros fazeres museológicos em Sergipe, definido aqui, como o primeiro momento do pensamento museologico sergipano; 1.2 O Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe e a inserção do Estado no cenário museológico nacional, definido como o segundo momento, em 1912; seguido da seção 1.3 Na Casa de Laranjeiras... O Museu Histórico Horácio Hora; Finalizando com a seção 1.4 Entre os retratos e a mobília de família: o Museu Sergipano de Arte e Tradição, destacado como o terceiro grande momento.

Por fim serão feitas algumas considerações sobre o desenvolvimento do trabalho e a sua contribuição para a ampliação do entendimento acerca do campo museológico sergipano.

1.1 A Bibliotheca Provincial e o embrião dos primeiros fazeres museológicos em Sergipe

A importância dos museus, origem das bibliotecas, é incontestável. Epifânio Dória, 1931.

Com certeza ao fazer a afirmação, ressaltada na epigrafe acima, Epifânio Dória estava se referindo ao Museu de Alexandria, responsável por abrigar uma grande coleção de papirus e outros escritos, que deram origem a biblioteca internacional idealizada por Alexandre. É assim que o bibliotecário faz a introdução do seu relatório, ao falar das condições do então museu abrigado na Biblioteca Pública do Estado, em 1931, a qual também utilizamos aqui para falar da formação do pensamento museológico sergipano, que tem as suas bases lançadas por essa instituição. Indo em direção a afirmação feita por Epifânio Dória, sobre a importante relação, constituída historicamente, entre a biblioteca e o museu, vem a ser na visão de Waldisa Russio (1988) um dos principais marcos, sendo este o primeiro, quando abordamos a evolução do conceito de museus. Segundo a autora, o Museu de Alexandria, pode ser considerado como um modelo representativo do museu na Antiguidade, responsável pela grande ruptura entre o museu sagrado e o científico. Em Sergipe, se tratando dos marcos de importância para a formação e desenvolvimento do seu pensamento, podemos buscar na Bibliotheca Provincial as origens dos primeiros fazeres museológicos, mesmo que rudimentar, baseados nos moldes de outros museus brasileiros surgidos até meados do século XIX. Tendo sua proposta de criação apresentada a Assembléia Provincial, em 1848, pelo laranjeirense Martinho de Freitas Garcez, Bacharel em Ciências Jurídicas e Sociais, a Biblioteca pública de Sergipe foi sancionada no dia 16 de junho do mesmo ano, através da Lei de número 233, pelo presidente de província Zacharias de Góes e Vasconcellos, sendo estabelecida da seguinte forma: Art. 1 Fica creada na capital desta província uma Bibliotheca com a denominação de – Bibliotheca Publica Provincial – que constará de obras antigas e modernas em todos os ramos de conhecimentos humanos, escolhidas e das melhores edições. Art. 3 A Bibliotheca poderá ser colocada em um dos conventos desta cidade, onde melhor parecer ao Governo. Art. 6 Na Bibliotheca haverá uma secção denominada – Arquivo –, que será destinada: – 1 Para originaes, ou copias de mappas e relações estasticas; 2 Para originaes, ou copias de quaesquer papeis do Governo Geral, ou provincial, cuja guarda no Arquivo se julgar conveniente, e para noticias de acontecimentos agradaveis ou desastrosos, provenientes de cousas naturaes; 3°. Para noticias de descobertas úteis de produtos da História natural, mineralogia e botânica, bem assim para originais de memórias remettidas ao Governo da Província para serem oferecidas á Bibliotheca, e que disserem respeito á história della e do Império do augmento e progresso da agricultura, comercio, navegação, industria, sciencias e artes (grifo meu). O secretario desta província faça imprimir, publicar e correr. Palácio do Governo de Sergipe, aos 16 de junho de 1848 da Independência e do Imperio. Como podemos observar, na organização da Biblioteca, apesar da sessão descrita no artigo 6, ser apresentada como Arquivo, suas funções iam além do simples recolhimento de documentos produzidos pela administração da província, a qual seria sua função típica nesse período. Aproximando-se mais do papel exercido pelos gabinetes-museus, típicos do final dos séculos XVIII e XIX (LOPES, 1997), sinalizando que se inseriam no contexto dos museus, a sua época, com a função de documentar, preservar e divulgar as “descobertas úteis de produtos da História natural, mineralogia e botânica, (...) e que disserem respeito à (...)sciencias e artes” abrindo um precedente para a reunir um acervo museológico, passando a dividir o espaço com o acervo bibliográfico. Com isso, podemos enxergar na criação da Biblioteca, mais especificamente no arquivo, o núcleo que deu início aos fazeres museológicos, recolhendo, documentando e preservando o patrimônio natural e artístico sergipano. Tal secção pode também ser entendida como uma forma de suprir algumas das carências culturais da província sergipana, algo possível na visão de “um homem influenciado e entusiasmado pelo “desenvolvimento intelectual e cultural de Pernambuco” (SANTOS, 1984, p. 26), responsável pela elaboração do seu projeto. Apesar de ter sido criada em 1848 a Biblioteca foi inaugurada apenas em 1851 num dos Salões do Convento São Francisco, em São Cristóvão, permanecendo com o seu funcionamento até 1855, ano em que teve seu acervo encaixotado e transferido para a nova capital Aracaju, passando a funcionar de forma precária na Assembléia Provincial, sendo esse um dos fatores responsáveis por ocasionar o seu encerramento (DÓRIA, 1911). Com o advento da República, em 1889, estando Felisbello Firmo de Oliveira Freire como governador, a Biblioteca volta a funcionar através do decreto de 27 de março de 1890, só que com uma função a mais, dessa vez de forma enfática, sendo responsável por ressaltar e desenvolver as atividades de cunho museológico, avaliando que (...) tendo em vista a alta conveniência de disseminar a instrucção por todas as camadas sociaes, e considerando: que ao lado da creação de escholas, deve haver a instituição de bibliothecas onde a população possa encontrar gratuitamente as obras de que careça consultar; que essa medida é de real vantagem para despertar o gosto pelo estudo, máxime entre as classes pobres, que, por falta de recursos, vêem-se privadas de obter conhecimentos de que necessita; que, no regimen a que actualmente obedéce o paiz é de estricta obrigação do governo empregar todos os meios, àfim de levar instrução ao povo, habitando-o assim ao conhecimento completo de todos os seus deveres e direitos; que isto sómente se póde conseguir por meio da eschola e das instituições auxiliares, taes como bibliothecas, museus; que este Estado resente de falta dessas instituições, que tão poderosamente inflùem no desenvolvimento moral e material de qualquer povo; São por meio dessas considerações, destacando a necessidade de órgãos culturais a exemplo de um museu, sentidas pelos sergipanos ao longo de quase quatro décadas, desde a criação da Biblioteca Provincial que podemos perceber, de forma embrionária, a presença do pensamento museológico o qual passava a tomar forma, com a sua institucionalização, estabelecendo-os da seguinte forma: Art. I Fica creada, nesta capital, uma biblioteca pública e á ella annexa um museu, que constará das seguintes secções: Geologia e paleontologia; Mineralogia; Zoologia; Anthropologia. Art. 2. Na biblioteca e museu haverá o pessoal constante do Regulamento que baixa para a execução deste decreto. Art. 3. Revogam-se as disposições em contrário. Cumpra-se e comunique-se. Palácio do Governo do Estado Federado de Sergipe, 27 de março de 18903. Com a criação da Biblioteca-museu, inaugurada em 13 de agosto do mesmo ano, o então Governador contratou seus primeiros funcionários, os quais passaram a ocupar os cargos de bibliotecário e conservador, funções exercidas respectivamente pelo Bacharel Josino Meneses e Antônio de Carvalho4. Em conseqüência da exoneração do bibliotecário, o conservador passou a acumular as duas funções, uma situação muito comum para a época, uma vez que “o livro na biblioteca e o objeto no museu foram durante muito tempo recolhidos, armazenados e preservados por um conservador, com o fim único da preservação patrimonial” (LE COADIC, 2004, p. 12). Mesmo passando por diversas dificuldades enfrentadas para o seu funcionamento, a biblioteca conseguiu manter em sua estrutura o museu, ainda que não estivesse organizado da forma como foi planejado, sendo na visão do bibliotecário Epifânio Dória uma situação própria do Estado, o qual segundo ele institui “coisas que para cuja manutenção (...) falta quase tudo, desde os recursos financeiros aos técnicos que as dirijam” (DÓRIA, 1959, p.01-02). Apesar das mudanças em sua estrutura organizacional, ao longo do tempo, a Biblioteca pública chega a década de 30 com algumas coleções de acentuada importância pertencendo ao museu (DÓRIA, 1918, 1932), um acervo resultante dos seus fazeres museológicos, instituídos desde meados dos oitocentos. É dessa forma que Biblioteca da o seu primeiro passo no que tange a expansão e estímulo para o exercício da Museologia no Estado, lançando os seus alicerces, sob o qual será erguido o mais antigo museu de Sergipe ainda em funcionamento. 1.2 O Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe e a inserção do Estado no cenário museológico nacional Após a iniciativa pioneira, incursionada pela Biblioteca Provincial no universo museal sergipano, a qual ganha forma no período republicano com a Biblioteca-museu, surge o Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe (IHGSE), responsável por inserir o estado no cenário museológico nacional. Sendo uma instituição congênere do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB) nascido em 1838, o IHGSE tem seu nascimento no dia 6 de agosto de 1912, no bojo da intelectualidade sergipana, com o propósito de: Verificar, coligir, arquivar e publicar os documentos, memórias e crônicas relativas às datas históricas, à distribuição geográfica, às curiosidades arqueológicas, ao folclore, etnografia e língua dos indígenas e a tudo que possa concorrer para a História do Brasil e, especialmente de Sergipe (SANTOS, 1984, p. 10) Conhecida também como “a casa de Sergipe”, a Instituto Histórico e Geográfico teve seu projeto idealizado por Florentino Menezes, que juntamente com intelectuais, a exemplo de Prado Sampaio, Manuel Cabral Barreto Neto, João da Silva Melo e outros sinalizaram através da sua organização a “maturação do corpo intelectual do Estado, bem como da consciência do papel interventor dos homens de pensamento nos problemas sociais, políticos e econômicos que afligiam Sergipe” (FREITAS, 2002, p. 14-15), no qual acrescentamos e ressaltamos, também, os de ordem cultural. É dentro desse contexto, na estrutura do IHGSE, que nasce o “esboço” do que seria o atual museu Galdino Bicho (Figura 5). Apesar do surgimento da unidade museal, é preciso deixar claro que Sergipe não é inserido no cenário museológico nacional pela atuação do museu em si, mas sim, pela dinâmica do conjunto das atividades dos seus outros organismos a exemplo do arquivo, da hemeroteca, e da biblioteca, uma vez que as funções do museu em si eram quase que inexistentes. Estando até a década de 50 organizado da seguinte forma: As peças existentes no MUSEU incorporado ao Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe, abrangem duas áreas, sendo uma sala no térreo e um salão no segundo andar. A primeira e principal está situada no térreo da aludida instalação, estando com os objetos arrumados, não atendendo ainda as regras e princípios técnicos. Parte dos objetos estão colocados em peças isoladas e inadequadas, raros objetos trazem etiqueta. Não há salas especiais para exposições, necessário serviço de classificação, livro de visitas, jetões para controle de visitantes, exposições temporárias e comemorativas, estatuto, fichário nem catálogo descritivo. Observamos objetos de variadas espécies sem defesa de valorização. Quanto ao “efeito estético da colocação dos objetos” [a museografia], não é conveniente. Não há renovação nas exposições cuja sala permanece fechada, medida usada contra os atentados por falta de funcionários. Na sala do segundo andar, todo acervo encontra-se disperso, não existindo etiquetas, arrumação, bem assim, meios propícios de defesa contra os estragos do tempo, tudo o que seja de acordo com os princípios técnicos modernos (GARCEZ, 1958, p.38). Mesmo com o estabelecimento do museu podemos perceber que Sergipe ficou por muito tempo numa espécie de “inércia museológica”, algo resultante da quase inexistência das atividades museais, ocasionada pela forte deficiência do museu. Mas, em compensação, a atuação do IHGSE, é de um feito benéfico sem precedentes na preservação do patrimônio histórico e cultural da memória sergipana, estimulando a criação de outras “casas de memória” em Sergipe. 1.3 Na Casa de Laranjeiras... O Museu Histórico Horácio Hora Ficando conhecida nacionalmente como “Museu à céu aberto”, uma referência feita pelo Ministro da Educação Jarbas Passarinho, em visita a cidade no ano de 1972, o município de Laranjeiras ganha seu primeiro museu na década de 40, vindo a compor com o IHGSE as duas primeiras instituições museológicas oficiais do estado. Criado por meio do decreto n. 31 de 16 de maio de 1942, pelo então prefeito Francisco Alberto Bragança de Azevedo, o Museu Histórico Horácio Hora encontrava-se localizado na Rua Coronel Freitas, nº. 19 e ocupava um dos salões da recém criada Casa de Laranjeiras. Tal instituição nasce com o objetivo de expor a história do município e reabri-la, nas palavras de Carvalho Neto, para os “olhos curiosos dos contemporâneos, orgulhosa de ter um passado, de ter uma história e de ter o que contar...” (NETO, 1943, p. 48). Dentro da Casa de Laranjeiras, além do museu, funcionava ainda: Exposição Permanente de Produtos do Município, a Biblioteca Moreira Guimarães (...), a Escola Municipal Ovídio Manaia (diurna), a Escola Municipal Siqueira Campos (noturna) a Agência Municipal de Estatística e o Diretório Municipal de Geografia (GARCEZ, 1958, p. 45) Apesar de ser um centro cultural de acentuada importância na cidade, a instituição não recebeu maiores cuidados pela administração pública, pelo menos no que se refere ao museu, o qual, segundo José Augusto Garcez, só foi organizado e conservado na época em que estava a frente o prefeito responsável pela sua fundação (GARCEZ, 1958, p. 42). Quanto a sua situação em meados da década de 50, a instituição se encontrava da seguinte maneira: Compreendia o Museu apenas uma sala com o acervo espalhado sobre o assoalho e paredes. Não havia arrumação, organização peças destinadas a proteção dos objetos, etiquetas nem catálogos descritivos. Mencionado Museu não possuía direção, apenas uma funcionária incompetente, não preserva os objetos das intempéries. Não havia livro de visitas, pois, não existia freqüência em face de permanecer fechado. O município responde pela manutenção desta entidade. Os prefeitos jamais zelaram pelo patrimônio vinculado à administração. (...) nada obstante sempre foi desprovido de tudo aquilo atinente à perfeita técnica museológica (GARCEZ, 1958, p.42) Complementando com a opinião de Gustavo Barroso, Garcez ressalta: Este museu que se tornou apenas “custódia de objetos” sem nenhuma finalidade educativa, com as portas cerradas ao público, bem poderia constituir um “necrotério de relíquias” na expressão do mestre Gustavo Barroso. É lastimável que o município não zele por um Museu que traz na legenda o nome tradicional do nosso maior pintor, saudosa figura de projeção internacional, porque, na França eterna, recebeu lauréis e honrou o nosso glorioso Estado (GARCEZ, 1958, p. 45). Era nessa situação, de extrema fragilidade, que se encontrava o Museu Histórico Horácio Hora, compondo juntamente com o museu do Instituto Histórico e Geográfico o cenário museológico sergipano. É dentro desse contexto que surge o Museu Sergipano de Arte e Tradição, evidenciado pelas práticas de José Augusto Garcez5 (1918-1992), colocado aqui como um divisor de águas dos fazeres museológicos em Sergipe, o qual será explorado no mais adiante. 1.4 Entre os retratos e a mobília de família: o Museu Sergipano de Arte e Tradição “O Museu (...), em sua própria casa é criação de seu pensamento, voltado sempre para a conservação do que o passado produziu. E não somente o passado é objeto de suas cogitações. O presente já está no seu Museu, ponto de convergência dos que vão a Sergipe.” (Padre Milton Santana, 1958). Partindo dessa observação, feita pelo Padre Milton Santana, é que ressaltamos um dos principais aspectos responsáveis pela criação do Museu Sergipano de Arte e Tradição, o pensamento de Garcez, ou seja, sua imaginação museal, a qual segundo Mário Chagas “não é privilégio de alguns, mas para acionar o dispositivo que a põe em movimento, é necessário uma aliança com as musas”... (CHAGAS, 2009, p.58). A aliança com as musas, da qual fala o autor, pode ser interpretada como uma necessidade de se ter uma ligação com as práticas museológicas necessárias para o desenvolvimento da imaginação. É assim, então, no ambiente familiar, numa relação de intimidade com esse universo museal que é ampliado o entendimento acerca do pensamento museológico em Sergipe. Tendo seu projeto iniciado no final da década de 40, mais precisamente em 1946, Garcez inicia a formação de sua coleção, reunida a partir de suas viagens pelo interior do Estado de Sergipe, é nesse contexto que surge o Museu Sergipano de Arte e Tradição, fundado oficialmente no ano de 1948, o qual mantinha em sua origem o pensamento do movimento modernista, ainda muito presente na primeira metade do século XX. Um pensamento baseado no ideal da preservação do popular, do tradicional, na qual segundo os modernistas estava contida a verdadeira cultura brasileira, pois estava longe da elite e consequentemente do que era estrangeiro (NOGUEIRA, 2005). Assim foi pensado o museu criado por José Augusto Garcez, com o intuito de musealizar a cultura popular sergipana através do patrimônio histórico cultural pertencente ao Estado, a fim de inserir Sergipe nesse projeto de modernidade cultural. Até então, mesmo possuindo dois museus, o Museu do IHGSE em Aracaju e o Museu Histórico Horácio Hora em Laranjeiras, Sergipe permaneceu por quase quatro décadas numa espécie de “inércia museológica”, uma situação que veio ser sanada com a atitude de Garcez após fundar o museu em sua casa. De acordo com Maria Lourenço é, justamente nesse período, no qual surge o Museu de Arte e Tradição, que “Museu pouco mais é que improviso, ação entre amigos e vôo cego quanto a sua permanência e continuidade” (LOURENÇO, 1999, p.21). A autora fala justamente da falta de apoio do poder público para a criação de museus, ficando sua criação nas mãos de sujeitos preocupados com a preservação do patrimônio e da memória. De fato é bem verdade, pois como declara Garcez, ele adquiriu com recursos próprios o seu acervo, e o manteve dentro de suas possibilidades sem receber apoio, o qual julgava ser indispensável para o melhor funcionamento da instituição. José Augusto Garcez ainda justifica a necessidade da criação do Museu em virtude da constante exportação dos bens patrimoniais, algo que acontecia, segundo ele, em parte pelo descaso do próprio Estado (GARCEZ, 1958). Agindo como um verdadeiro mecenas6, Garcez fez parte de uma frente intelectual preocupada com a cultura museal dando abrigo literalmente ao patrimônio sergipano em sua casa, é assim que surge a primeira instituição museológica que da inicio ao processo de salvaguarda, preservação, pesquisa e comunicação. A partir das suas ações museológicas Sergipe passa a ter mais destaque no quadro da museologia nacional, acompanhando o período de efervescência do surgimento dos Museus de Arte Moderna. Como compreende Lourenço, “nem todos são chamados de Museu de Arte (...). Outros contêm em sua denominação Museu de Arte e Tradição, como os do Estado do Sergipe, sediados em Aracaju (19487) e na cidade de Itaporanga D’Ajuda” (1999, p.89). Através da citação da autora podemos perceber a importância do museu criado por Garcez para a composição do cenário museológico sergipano, na década de 40, podendo ser percebido também como um elemento de ruptura para a renovação da Museologia no Estado, que passa a ganhar um novo modelo de museu. Vejamos como estava organizado o Museu Sergipano de Arte e Tradição, segundo seu próprio fundador, que o descreve em sua obra museológica, “Folclore: Realidade e Destino dos Museus” (1958 p.33-35). Endereço-Avenida Barão de Maruim, 629 – Caixa Postal, 83. Distrito- Aracaju- Estado de Sergipe BRASIL. Entidade mantenedora - José Augusto Garcez. Direção - José Augusto Garcez. Natureza - Particular. Características - O Museu é autônomo, de caráter geral, franqueado diariamente ao público, com admissão gratuita do visitante, variando o número anualmente de 800 a 2.000 pessoas. Não há horário estabelecido, porque está vinculado na própria mansão residencial, sendo o público atendido pelo proprietário, sua família e empregados. Observações- a) Mencionado órgão foi organizado com recursos próprios, não recebendo até hoje [1958] nenhum auxílio dos poderes públicos. b) A casa é alugada, não correspondendo a técnica exigida na perfeita função do verdadeiro Museu. c) Todavia, animado pelo idealismo e os conhecimentos de museologia, quanto a organização, arrumação, catalogação, restauração de objetos, venho realizando de acordo com os nossos recursos. Por falta de auxílio de poderes públicos ainda não dispomos de funcionários competentes e técnicos a fim de transformar a casa da História atuante na sua ação educativa e social. d) Realizo pesquisas com sacrifícios e recursos próprios no que se refere a paleontologia, etnologia e Arte Popular. e) Possuímos: A - Achados referentes à Paleontologia (fósseis de Mastodonte e Megatherium) e de outros animais. B - Objetos que representam a etnologia brasileira. Aquisições- C - Arte Sacra: - imagens em madeira, terra-cota, porcelana, gesso, cera, bronze. Sinos, peças barrocas, etc. D - Arte popular em geral, inclusive artesanato. Especificação do material: terracota, couro, barro comum, chifres, sisal, osso, cipó, palhinha, taquara, tucum, fio, caroá, coco, flecha, etc. E - Armaria: - pistolas, armas brancas, lanças, trabucos, fuzis, rifles, garruchas e espadas. Máquinas de guerra: - canhões e balas. F - Instrumento de Tortura- tronco. G - Ciclo do Cangaceiro: Embornais de pano e couro, cantil, chapéu e punhais que pertenceram aos bandidos: José Baiano e Lampião. H - Ciclo da Escravidão- peças e documentos. I – Iconografia: Imagens e quadros. J - Animais paquidermazados. K- Antropologia Cultural. Empreendimento: - Em 1957, na campanha Internacional de Museus – apesar de não receber revistas, cartazes, indispensável colaboração publicitária nem auxilio do ICOM - inaugurei a secção de Antropologia Cultural, exposição interna e na Livraria Regina Limitada. Livro em preparo: Função do Museu no sistema educacional brasileiro, devidamente ilustrado. Mantenho a dez anos através do PRJ-6 o Programa radiofônico PANORAMA CULTURAL, aonde existe uma secção sobre a missão dos Museus. Serviço de Documentação:- Por carência de espaço, não possuímos sala de reserva ao público. Toda residência é ocupada com o acervo. Mantemos uma biblioteca de assuntos ge variando o número anualmente de 800 a 2.000 pessoas. rais. Em 1953 introduzi em Sergipe “literatura falada” com o Serviço de Documentação do “Movimento Cultural de Sergipe”. Editei 33 vols. sobre economia, poesia, finanças, sociologia e Museu. Para a publicação de aludidas obras, contei com a colaboração de alguns patriotas. Visitas guiadas:- Aos visitantes esclareço a origem do acervo, bem assim o aspecto histórico, empenhando esforços a fim de oferecer ao público o sentido primordial que é de colocar o Museu - na missão educativa e social. Mesmo, segundo Garcez, “não correspondendo a técnica exigida na perfeita função do verdadeiro Museu” a instituição recebe vários comentários em âmbito nacional das mais diversas autoridades da área cultural, a exemplo de Drummond, Menotti Del Picchia, Gustavo Barroso, David Carneiro, Fernando de Azevedo e outros que colocam o Museu Sergipano de Arte e Tradição em uma posição de importância na composição do quadro museológico nacional, os quais manifestam votos de apoio ao seu empreendimento em prol do desenvolvimento cultural do estado de Sergipe. Apesar de funcionar em um ambiente inapropriado, como dizia Garcez, “por carência de espaço”, num lugar que limitava as possibilidades na utilização das técnicas expográficas e dava um aspecto de uma grande reserva técnica, pois tudo estava em exposição, o Museu Sergipano de Arte e Tradição conseguiu cumprir as suas funções museológicas de preservação, pesquisa e comunicação, o que lhe dava um destaque entre os demais museus do Estado, diante de sua funcionalidade, sendo bastante visitado, variando anualmente de 800 a 2.000 pessoas. É neste cenário, entre os retratos e a mobília de família, que ocorre o desenvolvimento das pesquisas e estudos da Museologia8 e cultura material sergipana, o que lhe rendeu algumas publicações a exemplo de Holandeses em Sergipe (1954), Canudos Submersos (1956), O destino da Província (1954), Centenário de João Ribeiro (1960) entre outras. Sua casa torna-se, então, um centro irradiador do pensamento e dos novos fazeres museológicos em Sergipe, sendo sua coleção uma chave reveladora para o seu entendimento, através da qual seus estudos construía, reconstruía e desconstruía versões, da cultura sergipana, pautadas no processo da pesquisa museológica. A sua ação gerou, ainda, um reflexo no quadro da museologia sergipana em sua época, ficando também impressa na obra Realidade e Destino dos Museus (1958), a qual pode ser considerada como um manifesto por uma “Museologia consciente”, mais avançada e preocupada com a sua responsabilidade social e com o fazeres museológicos, até então ausentes em Sergipe, os quais podem ser caracterizados pelas ações de preservação, pesquisa e comunicação. Considerações finais Após a incursão pelo campo da Museologia sergipana, através de seus marcos fundamentais, temos a certeza de que muito ainda há por se fazer para chegarmos a uma compreensão plena do pensamento museológico constituído em Sergipe. Mas em se tratando da contribuição do presente artigo para a produção do conhecimento do campo da Museologia em Sergipe, podemos destacar alguns pontos de relevância que acrescentam no entendimento acerca da formação do seu pensamento. No tocante ao estabelecimento de um marco para se pensar a incursão de Sergipe pelo universo da Museologia, podemos estabelecer o século XIX, com a criação da Biblioteca Provincial, como um período chave em que se da o seu fomento, o qual culmina com a criação da Biblioteca-museu criada por Felisbelo Freire. Mesmo não funcionando de forma plena, como foi pensada a Biblioteca, podemos concebê-la como o embrião que deu início a formação do pensamento museológico sergipano, configurando o primeiro grande momento da Museologia em Sergipe. Esta ação gerou um reflexo, para se pensar a necessidade de novos espaços de preservação da memória e do patrimônio de Sergipe, abrindo espaço para a criação do Museu implantado no Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe, sendo este o segundo grande marco. Após apresentar, no desenvolvimento do trabalho, em que situação se encontrava o cenário museal sergipano até o final da década de 1940, do século XIX, com duas instituições museológicas inativas em suas funções técnicas, como diagnosticou José Augusto Garcez (1958), percebemos que o Museu Sergipano de Arte e Tradição, fundado em sua casa no ano de 1948, foi um dos grandes responsáveis por inserir no Estado mudanças de pensamento na forma de se “fazer e pensar’ museu, dando início as atividades de preservação, pesquisa e comunicação, marcando um período de impulso para a renovação da Museologia sergipana, sendo este o grande terceiro momento. Concluindo, então, o presente texto, podemos estabelecer esses três grandes momentos, como a tríade que contribuiu de forma decisiva para a formação do pensamento museológico sergipano explanado nesse breve texto. BIBLIOGRAFIA CHAGAS, Mário de Souza. A Imaginação Museal: Museu, memória e poder em Gustavo Barroso, Gilberto Freyre e Darcy Ribeiro. 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